Viagem ao redor do meu saco
Xavier de Maistre (1763-1852)
Quero apresentar meu pequeno poema, mas antes devo dizer que ando encafifado com um texto profano que ousei começar. Há meses, entre pausas longas provocadas pelo desânimo, pela descrença e pela falta de inspiração, e curtíssimos momentos de febril labuta e criatividade, venho lidando com esse bendito híbrido (não é conto, nem crônica, nunca foi ou será romance, não sei do que se trata). Posso confessar que o mote me veio de Machado. Não, mentira minha. Não foi propriamente de Machado que me surgiu a idéia de escrever a ladainha em prosa, mas de um escritor que habitava os favoritos do velho Bruxo: o francês Xavier de Maistre e seu divertido “Viagem ao redor do meu quarto” (1794). Comecemos pela constatação de que alguns leitores me acusam de caprichar na dose de veneno pornográfico em alguns dos meus escritos. Injusta acusação, grito cá com meus pentelhos. Grito em vão, pois até os amigos mais chegados adquiriram o hábito de me presentearem com lembranças porno-eróticas que adquirem em suas viagens. São estátuas nuas, copos fálicos, cinzeiros com motivos pornográficos, enfim, uma parafernália de pequenos objetos profanos. Devo confessar que gosto muito desses mimos. Olho-me no espelho e aquele menino que vejo não é o velho sujo e sacana que muitos enxergam nos textos e na vida real. Paciência. Certa vez, lá se vão bons 26 anos, num concurso de poesias, ouvi o seguinte comentário de um leitor acerca de singelos versos que inseri no certame promovido pelo Diretório Central de Estudantes “Parece coisa de Jorge Amado”. Em princípio, cheio de um preconceito alimentado pela burrice e pela ingenuidade, tratei que me xingava, pois como poderia me comparar ao velho Jorge Amado, um não escritor? Depois, curioso, ouvi sua explicação de que meus versos tinham muito palavrão, eram indecentes, como a prosa do baiano. Ora, ora, ora. Começou ali a minha fama de um escritor puto que almeja ser um puto escritor. Hoje, respeito o velho Jorge e sua capacidade ímpar de escrever uma boa história, coisa que eu, e muitos escritores deste país, principalmente da minha geração, carecemos absurdamente, mas continua pregada em mim a fama de um boca suja. Há uns dias, sofrendo com esse meu novo texto inspirado em Xavier de Maistre, comecei um longo discurso sobre o sexo, território de Afrodite e das bacantes em transe, pasto das vacas sagradas de nossa natureza. Batizei meu híbrido com o título paródico “Viagem ao redor do meu saco”, e mergulhei de corpo e alma em sua escritura. Que me perdoem os espíritos puros, que ainda há, e como diria meu mestre Manuel Bandeira, “as virgens cem por cento e as amadas que envelheceram sem maldade”, mas não faço concessões ao bom gosto quando escrevo e vem daí minha fama de boca gregoriana (do poeta barroco baiano). Palavrões são doces quando bem colocados na boca de um personagem. Nada melhor que um porra, que um cu ou uma buceta, com u, no momento propício da narrativa. Lembro-me de Rubem Fonseca e seus avós que nunca foderam. Ainda não terminei esta viagem em prosa, mas tenho meio caminho andado em volta de meu saco, e foi justamente no meio dessa caminhada que deparei-me com a lembrança feliz da “Arte de amar”, de Bandeira:
Manuel Bandeira (1886-1968)
Arte de Amar
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não
(in Belo, Belo)
Os versos desse belo poema cairam como espada na bainha lúbrica de meu texto, em epígrafe, pois toda a discussão do meu híbrido reside no embate entre tendões, nervos, fluidos, líquidos e sussurros e a matéria inefável do mistério: em onde reside o desejo? Devo logo deixar claríssimo que não tenho a mínima pretensão de descobrir de onde e para onde vai a libido, deixando-a a cargo do “desvão imenso do espírito”. Note como neste ponto começo a mastigar palavras que transcendem a concretude do real: falo de desejo, espírito, libido, no momento exato em que trato de falo, orgasmo, cópula, sêmen. Ao escrever a “Viagem ao redor do meu saco” estou, mesmo sem querer, invadindo a seara metafísica de Deus e das almas, apesar de querer falar de carne e corpos. Como minha matéria aqui é a linguagem e não a ação da cama, é óbvio que meu caminho passeia pela reflexão sobre o sexo, não é, portanto, o sexo; nem simulacro de sexo, apenas indagação, abstração, confissão, ficção em torno de sexo. Não se goza pela palavra, quando se escreve ou se a mastiga. Inspirado em Bandeira, escrevi meu pequeno poema, ainda sem título, que segue:
As almas
Na cama são cegas
Os corpos
Em braile se enxergam.
2 Comentários:
Certamente você conhece "A Cópula" o maravilhoso poema pornô de Bandeira.
Estamos para sempre divididos entre o céu diáfano e a lama primitiva, pendulando, ansiando o primeiro para nos elevarmos da grota escura. Pedindo por esta quando, leves e assépticos, parecemos perder a conexão com a saudosa matéria.
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