sábado, dezembro 09, 2006


OS ANJOS


This he said to me
"The greatest thing you'll ever learn
Is just to love and be loved in return"
Eden Ahbez, em Nature boy

Para Lincoln, que não cheguei a conhecer.



A poeira provocada pela passagem do carro que carrega os exterminadores já pousou sobre as coisas vivas e mortas. O ermo é paisagem, quase miragem. Nada além de um chiado leve, gemido, indicando a presença do sofrimento onde parecia nada haver. Visagem. Assim, devagar, bem devagar. Primeiro uma gota, escura, amarga, exalando um cheiro horrível de podridão e dor, caindo para... de, não importa mais. Sem barulho algum além do da respiração ofegante e agoniada, no compasso da desgraça e do desespero que parecem se findar na marcação do metrônomo da tragédia. Gotas várias de um sangue muito negro e fétido escorrem pela terra, vermelha terra do cerrado, mergulham nas raízes da sibipiruna, alimentando a matriz exposta do capim seco prestes a arder-se em chamas... Longe, a escuridão pesada do abandono e da ausência de carinho. Só dor, profunda dor que preenche cada espaço do pensamento que tende a não mais pensar. Não é possível mais sentir onde não dói, onde não sangra, onde não fede, onde não escapa a seiva vital. Tudo massa disforme e pútrida, ainda movendo-se sobre e sob a respiração que parece desaparecer, assim, devagar, bem devagar. Envoltos em fita crepe, sob carne macerada que expõe ossos partidos, tutanos, artérias e tendões e alguns dentes arrancados, há sonhos que nunca se realizarão e outros que, realizados, se perderão na decomposição da matéria e repousarão, carbono e fósforo e potássio e cálcio, na frialdade inorgânica da terra; prazeres que nunca serão gratificados, gozos que não serão gozados, sêmen que apodrecerá na origem; medos que não terão mais razão de existir, pois a escuridão adentrou definitivamente o espírito; leituras que se perderão sob a o último lampejo neuronal e que levarão consigo, para lugares insuspeitados, os machados e clarices e rosas e pessoas e dantes e goethes e augustos e; sorrisos e lembranças e resquícios de outros corpos que não mais existirão ali, ali naquele monturo, naquela coisa, naquele traste, naquele treco, naquele troço, naquilo que já foi ha pouco um homem e que agora poreja, goteja um líquido escuro e de odor insuportável. Aquele pacote envolto em fita crepe, assim imobilizado para o exercício da pancada e para a delícia do mais profundo e escuro prazer bestial, com pêlos saindo pelas frestas manchadas de sangue e pedaços marcados de carne, foi um dia o amante que fodeu e foi fodido, que gozou e foi gozado, que deu prazer e recebeu prazer; o amigo que abraçou e que beijou e que chorou a ausência e que perdeu o sono e que sentiu sede e que chorou em Cinema Paradiso e sorriu em Morte em Veneza e que xingou o guarda de trânsito e que lamentou a perda de cabelos e o ganho de peso e que telefonou de madrugada se desculpando por ter esquecido o teu aniversário e que detestava comer fígado mas adorava carne moída com batatinha e ervilhas e que nutria o mais íntimo desejo oculto de fazer sexo grupal e que se preocupava com o fato de estar chegando aos trinta sem ter adquirido uma casa e que ultimamente andava insone por causa de; aquele objeto encolhido ao pé da árvore seca do cerrado continha o cidadão que reclamou na fila do banco e que votou para eleger o presidente da república. Aquela escultura de carne triturada, argamassa de tecido e sangue, um dia foi o sorriso que encantou mulheres e homens, o menino que soprou as cinco velas de um aniversário que, ocorrido há vinte e três anos, não mais existirá, a não ser nas fotografias guardadas na lembrança de um vulto feliz de mulher; foi o estudante que declamou poemas de Florbela Espanca...espanca. Ontem ainda acreditava num futuro. Mesmo quando, colhido pela inexorabilidade da peçonha e da traição, encarou a figura da morte e da crueldade, ainda havia dentro dele, pequenina, a esperança de que se lembraria daquilo um dia com pavor, mas vivo e pleno. Quem algum dia saberá realmente? Agora, parece não haver mais movimento no meio daquele espetáculo de sangue e fita crepe. É o último dos instantes, o ínfimo, o limiar. Tudo o que é efêmero é somente preexistência; O humano-térreo-insuficiente aqui é essência; O transcendente-indefínível é fato aqui; O feminil-imperecível nos ala a si. Só pequenos répteis e insetos presenciaram o momento em que, após Murdad, cortando o fio primordial que nos faz ser, separar com as mãos de éter e mistério o corpo da alma, Azrael, o imenso anjo de quatro mil asas e bilhões de olhos e línguas, desceu do não-onde-e-sempre trazendo a indesejada das gentes. Agora, apenas o vento seco do cerrado envolvendo o corpo sem vida do rapaz, assim, devagar, muito devagar.

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