segunda-feira, junho 01, 2020

Cenas de Copacabana - As plantinhas tristes



Experimente ler a crônica ouvindo: https://www.youtube.com/watch?v=rpLdtuSTueQ


Estavam todos incrédulos. Um alvoroço na portaria, ambulância e polícia na rua estreita, atrapalhando o tráfego. Dona Maria Helena? A pergunta carregada de espanto. Do sétimo andar? E a mão cobrindo metade do rosto, impedindo que a surpresa se configurasse nos lábios afastados, a boca aberta. Seu Severino, o porteiro, ouviu um barulho forte na cobertura do bicicletário. Achou que fosse alguma molecagem de morador do prédio. Percebeu um buraco nas telhas de amianto e, no meio das bicicletas caídas numa bagunça enorme, logo percebeu um par de pernas e pés descalços, um corpo em posição insólita, uma poça enorme de sangue, o rosto enfiado no chão. Sim, Dona Maria Helena do sétimo andar, saltou para o mistério. Professora aposentada, tinha 64 anos, calada, muito discreta. Vivia com o pai, o senhor Delmiro, antigo funcionário da Casa da Moeda. Ele, portador do mal de Alzheimer, demandava muita atenção e cuidados da filha. Ela, cada vez mais silenciosa e deprimida, aproveitando-se de que o pai dormia, pulou do sétimo andar e desistiu de tudo. Os vizinhos não sabem que atitude tomar. Não se conhecem outros parentes. Dizem haver uns sobrinhos em Campos, mas não se tem notícia deles e nem sabem como contatá-los. Pobre seu Delmiro. Ainda bem que a doença lhe poupou dessa tristeza profunda. Para ele, pouco importa o que se lhe sobre da vida. Como Dona Maria Helena, em meu prédio, outros suicidas florescem pelas janelas de Copacabana. São mesmo uma espécie triste de flores, plantinhas negras e murchas que optam por não perfumar o tempo e florescem encharcadas de sangue no asfalto. Escolhem maneiras diferentes de partida. Ana C. voou para o asfalto da Toneleiros. Alguns abrem o gás, como Torquato Neto, em Botafogo. Outros ingerem venenos, como Aline, dezesseis aninhos, da Paula Freitas que, após uma briga com o namoradinho de escola, resolveu castigá-lo matando-se. Sob o sol e o ar salitroso e saudável de Copacabana há muita escuridão e desespero. Há muita solidão berrando nos apartamentos mais plácidos da Siqueira Campos, da Santa Clara, da Domingos Ferreira. Muito abandono, muito desencanto. Não pense que tudo são corpos belos e perfeitos, festas e caipirinhas na praia, baladas e chope gelado no Leme, pois não são. Sob a luz do dia, ocultam-se muitas sombras e figuras desesperançadas. Há aqueles que se jogam do décimo segundo andar do Edifício Presidente, na Prado Júnior, movidos pelo consumo exagerado de drogas, estes não são suicidas exemplares, embora, tecnicamente, sejam suicidas que adiantaram o relógio. Lembro-me do caso desse rapaz, vinte e um anos e muita loucura, que se jogou de um Edifício em Nossa Senhora de Copacabana. Soube-se depois que passara o dia consumindo muita cocaína e às 3 da madrugada, paranóico, resolveu voar sobre a Avenida. No dia seguinte, uma poça de sangue e um dente perto do meio-fio atestavam o fracasso do vôo. Ìcaro sem mito. Há o caso da mulher que, saltando do quinto andar de um edifício na altura do Posto 6, caiu sobre uma mãe que empurrava um carrinho de bebê. Matou-se matando. O bebê escapou ileso e órfão de mãe. Vejam essa notícia que li recentemente: “O Ten-Cel BM Alex Vander, comandante do 17º Grupamento de Bombeiros Militar (Copacabana) manifestou recente em reunião do Conselho comunitário de Segurança de Copacabana e Leme realizada em 21/05/2013, a sua preocupação com o grande número de suicídios ocorridos em Copacabana. Segundo o comte. foram mais de 20 casos. Hoje tivemos a notícia de que 02 idosos teriam se jogado pela janela do nº 47 da Rua Santa Clara.” A coisa é séria e é muito triste. A extrema felicidade da babel cosmopolita agride a solidão dos velhos e solitários. O abandono é cruel. A obrigação de também ser feliz, mesmo não encontrando motivos para sê-lo, é o adubo que alimenta as raízes dessas plantinhas tristes que chamam de suicidas. Segue um pedacinho da letra de um samba que compus há tempos:

Ninguém há de viver seu sonho ou seu pesadelo
ninguém vai dormir por você
nem há se sonhar sua dor, viver seu desespero
ninguém vai gozar por você
Viver não tem drama.
Há solidão nos velhos que cruzam a rua
quase a se arrastarem
Há solidão naquele silêncio profundo
que seus olhos trazem
A solidão: companheira fiel do seu jantar.


 


Cenas de Copacabana - Os meninos do Rio











Experimente ler a crônica ouvindo:  https://www.youtube.com/watch?v=a6HgNG8Llvc

Há alguns minutos conversam nada discretamente. Riem alto, falam alto, gesticulam escandalosamente. Contei, lá se foram dois cigarros bem tragados e, depois, jogados na calçada. Acabou de acender o terceiro. Que coisa feia! Penso com meus eus encalacrados. Refiro-me aos maus modos do mais alto deles, o fumante, um sujeito grande, corpanzil bronzeado, muitos pelos e conversa esperta. O mais baixo é calvo, sunga preta, sem camisa, sandália de dedo. Presumo que veio da praia, tem areia nas canelas brancas. O outro, o fumante de maus hábitos, tem cabelos grisalhos, amarrados num rabo de cavalo prateado. Usa uma pulseira de couro e corrente no pescoço A testa, muito vermelha, avança no território capilar, como terra devastada por madeireiros inescrupulosos. Me pego sorrindo com essa ideia estapafúrdia do desmatamento capilar do sujeito, que também usa uma sunga, vermelha, velhinha, pois um pouco desbotada. Juntos, presumo, devem somar bons 120 anos de praia. Muita história pra contar. Muita maresia. Enquanto trocava a bateria de meu relógio, num chaveiro na esquina da Paula Freitas com Nossa Senhora de Copacabana, fiquei observando o papo daqueles dois velhos meninos do Rio. A conversa passou do futebol para a política e dessa para o jogo do bicho, que o mais baixo deles tinha faturado. Coisa pouca, ele disse, mas dá para umas “cervas” no Real Chopp. O outro, que descobri chamar-se Roberto, ou Alberto, ou Gilberto, pois o tratavam simplesmente como Beto, tinha uma tatuagem no braço esquerdo e era torcedor do Fluminense, denunciava-o a camisa tricolor repousando no ombro. Pés descalços. Era cumprimentado por grande parte dos transeuntes, razão pela qual deduzi que devia morar ali pertinho. Parecia mesmo estar no quintal de casa, tal a desenvoltura exibida em plena calçada. Aparentavam ser amigos há séculos, mas isso não me dá certeza alguma, pois o carioca, quando conversa, passa a boa impressão de te conhecer há séculos. Mas eu preferi investir na ideia de que eram realmente amigos de antigos carnavais. O mais baixo, no segundo casamento, quatro filhos, reclama da PA que lhe consome parte do ordenado. O cabeludo, 4 casamentos e várias aventuras que lhe renderam filhos espalhados pela Penha, Campo Grande e Niterói, mora com a mãe e um cachorro vira-lata, batizado Lennon. Aposentou-se recentemente e complementa os seus parcos rendimentos com a pensão que a mãe recebe como viúva de militar. Combinam um vôlei no Posto 3 “qualquer hora dessas” e sabem que não vão mesmo jogar essa partida, em hora alguma. Despedem-se com um abraço meio sem jeito, cheio de areia e suor e, tenho toda certeza, saudade sincera dos meninos que um dia foram. O moço do chaveiro, observando minha atenção para com os amigos que conversavam, me diz baixinho: o Beto aí, dizem, comeu a Janis Joplin. E eu fiquei sorrindo e pensando que Serguei não estava só nessa parada.

Cenas de Copacabana - Os cães












Experimente ler a crônica ouvindohttps://www.youtube.com/watch?v=coK7KB8KdDA
Qual o signo dele? A pergunta me pegou de surpresa. O inusitado na tardezinha urbana de Copacabana. Ele se referia ao cachorro. Eu não conseguia acreditar que a pergunta era endereçada ao Chiquinho, que eu trazia na coleira presa à guia. Disse-lhe, contendo o sorriso, que o meu cachorro tinha nascido em janeiro, dia dois. Ele emendou: os capricornianos são muito amistosos e continuou brincando com o meu yorkshire, que não tem noção de sua pequenez. A doçura, o encanto, a atração sincera que ele demonstrou com o cãozinho arisco, só reforçou a imagem que tenho captado nas ruas deste bairro: além dos turistas e dos velhos, os cachorros são as figuras constantes. O morador de Copacabana é um apaixonado por cães. De todas as raças, tamanhos, cores. Uns silenciosos, outros escandalosos. Uns agressivos, outros dóceis e medrosos. Andar pelas ruas de Copacabana é esbarrar com esses animais. É difícil distinguir quem guia quem, pois eles parecem levar seus donos para passear e manter contato com o mundo. Sim, são os cães que retiram seus donos de suas solidões e recolhimentos, dos apartamentos pequenos e os levam para ver outros donos e seus cães pelas ruas. Circulando pelo quarteirão ou caminhando na praça do Bairro Peixoto, os cães se atraem, se cheiram e, nesse contato, obrigam seus donos, que nunca se viram antes, a se aproximarem e conversarem. Do cumprimento de bom dia ou tarde, passa-se às perguntas sobre os animais, idade, sexo, nome e acaba-se ingressando em assuntos menos caninos e mais humanos, trivialidades, política, futebol, mulher, carestia, arrastão, medo, festa... os habitantes dos conjugados e kits mantêm contato com os moradores dos grandes apartamentos e casas de vilas. Tudo se dá por causa desses bichos que nos obrigam a dar voltas para que façam suas necessidades. É curioso notar que acabamos por saciar as nossas necessidades de contato humano, de ouvir o outro, de ver e sentir o estranho tão familiar, que partilha a vidazinha de Copacabana ao seu lado e que, de outra forma, passaria incólume ao seu afeto. Será que os cães planejaram essa estratégia para nos manter vivos, menos solitários e mais esperançosos com as coisas da vida? Tenho um amigo que confidenciou-me outro dia a sua teoria cruel. Segundo ele, quando o sujeito se dedica a passear com seu cão é por que desistiu da humanidade. A prática desse passeio com o Chiquinho tem me demonstrado justamente o contrário. É com meu amigo de quatro patas que tenho conhecido a vida cotidiana deste bairro. A história da vida privada em Copacabana não será completa se não houver um olhar atento à função social dos cães. A conversa que começou pelo signo de Capricórnio do meu yorkshire descambou para um contato amistoso, que rendeu-me a descoberta de um indivíduo inteligente e atento às coisas do mundo. Psicólogo, astrólogo, amante dos cães. De que outra maneira eu poderia conhecer alguém assim? Depois que nos despedimos e trocamos endereços de redes sociais para continuarmos nossa conversa, olhei para o Chiquinho e tenho certeza de que, em seu olhar de profunda negritude, brilhava uma luzinha de ardente felicidade e dever cumprido. Continuamos nosso passeio, ele de rabo abanando e eu assobiando uma velha canção dos Beatles.

Cenas de Copacabana - Os paraíbas




foto: João Gabriel A.









Experimente ler a crônica ouvindo:  https://www.youtube.com/watch?v=y7OEPImuOgU

Seu Luiz veio de Campina Grande ainda menino. O pai, já falecido, desceu pro sul lá pelos 1950, como previra Graciliano Ramos no finalzinho de “Vidas secas”. Morando em São Cristóvão, ganhou a vida como estivador, até que uma hérnia de disco o jogou para uma banca de balas e cocadas no Saara, pertinho da Uruguaiana. Seu Luiz é porteiro na Hilário de Gouveia, em Copacabana, e mora em Bonsucesso com a mulher e cinco filhos. No edifício ao lado, Raimundo, também paraibano - de “Serra branca, moço”, gosta de frisar, para marcar território e estabelecer a diferença – costuma comprar rapadura e outras guloseimas da “terrinha” no Centro Luiz Gonzaga de tradições nordestinas, a antiga feira de São Cristóvão. É lá que, quando tem algum tempo e dinheiro sobrando, gosta de ir aos sábados, para ouvir um bom forró de pé de serra. Hoje, enquanto seu Luiz varria a calçada em frente a entrada do seu condomínio, Raimundo, fumando, contava, meio invejoso, que um terceiro porteiro, o João, acabara de voltar da Paraíba, onde passara as férias, e onde não botava os pés desde 1971, ano em que chegou ao Rio, uma mão na frente, outra atrás, em busca de emprego.
            - Faz tempo que não visito meus irmãos em Campina. To precisando ir lá, mas não sobra dinheiro, disse seu Luiz caprichando num montinho de folhas secas.
             - Pois é, também não consigo - traga o cigarro e faz cara de quem refletiu muito em algo importante - não sei onde o João arranjou grana pras passagens... soube que ele foi com a tropa toda, mulher e filhos.
            - Bom pra ele, né, Raimundo? Diz seu Luiz, num tom de voz que, acentuando e estendendo a abertura do né, evidencia sua reprimenda.
            E ficaram nessa conversa mole, com uma saudade acochada e, no caso de Raimundo, uma ferroada de inveja.
           No edifício em que moro, há cinco porteiros que se revezam na função de faxina e portaria. São todos nordestinos, acredite. Tenho, às vezes, a impressão de que a grande maioria dos porteiros de Copacabana desceu do Nordeste para abrir e fechar as portas dos edifícios do Rio de Janeiro. Deveriam fazer um pequeno e particular senso para confirmar essa minha impressão. São profissionais zelosos, com exceções, é claro.   
Conhecem a fundo sua clientela, quem anda com quem, quem namora quem, quem brigou com quem, quem pode, quem não pode, quem manda e quem obedece. Porteiros são verdadeiros poços de informação do condomínio. Um conselho: não se meta em confusão com um porteiro, pois são quase donos do edifício. Como Raimundo, João e seu Luiz, muitos “paraíbas” integram o pelotão de porteiros da rua Hilário de Gouveia, Santa Clara, Domingos Ferreira, Prado Júnior... de toda Copacabana. Para os cariocas da gema, todo nordestino é “paraíba”, mesmo que baiano, piauiense, cearense. Assim, num mesmo balaio rubro-negro ostentando um NEGO, vão-se pernambucanos e alagoanos e maranhenses. É como se o mundo da portaria fosse todo ele de paraibanos. Para um carioca, ninguém nasce na Bahia, no Ceará ou Pernambuco. Todos somos – pois também sou – paraíbas. Não por outro motivo, há uma pracinha entre as ruas Siqueira Campos e Hilário de Gouveia, imprensada pela Nossa Senhora de Copacabana, que tem o singelo nome de Praça dos Paraíbas. Convenhamos, é muito mais agradável que chamá-la pelo nome real: Praça Serzedelo Correia, nascido no Pará, e que foi ministro de Floriano Peixoto, um paraíba de Alagoas.


Cenas de Copacabana - Domingo



foto: João Gabriel A.









Experimente ler a crõnica ouvindo:  https://www.youtube.com/watch?v=VGAWunS-i10

Copacabana. Domingo de Páscoa, nublado e calmo. Sob o céu cinza do Rio de Janeiro paira, misteriosamente, uma certa violência velada. Atravessei apressado a Hilário de Gouveia. Seguia a pé para a Sala Baden Powell, na Nossa Senhora de Copacabana, onde ouviria Música Brasileira de Concerto. Biscoito fino oferecido pelos lábios e dedos de um trio feminino, flauta, violoncelo e piano que preencheriam meu fim de tarde. A tranquilidade do passeio sofreu o primeiro impacto em frente a Delegacia de Polícia, ainda na Hilário, onde um grupo armado de policiais acompanhava um jovem, não mais que 18 anos, algemado. A cena surpreendeu-me por ser real, por vê-la ao vivo, fora da televisão. A tranqüilidade estampada na cara do jovem delinqüente parecia denunciar vasta experiência nesse trajeto. Havia um quê de traquejo naquela pose orgulhosa. Cabeça erguida, caminhou em direção a delegacia para autuação, creio. A visão trágica da juventude encarcerada e sem futuro me deixou cabisbaixo. Caminhei com certo desconforto, como se houvesse culpa em estar livre para saborear o banquete da cultura, enquanto outros se metem no caos do cárcere. Que caminhos distintos percorremos por essa vida? Tudo força das engrenagens sócio-econômicas ou haveria um espaço para a mão do fado? Basicamente nada nos difere, porém sigo meu caminho, agora menos tranqüilo que o olhar do jovem que adentrou a delegacia. Em frente ao Pavão Azul, outros jovens divertiam-se tomando cerveja, em pé, em algazarra, imunes ao drama que transcorria ali tão perto de seu sossego. Atravessei a Barata Ribeiro e segui em direção a Paula Freitas. Na esquina, o Real Chopp mostrava um bando de rubro-negros bebendo a espera do início da transmissão de uma partida de futebol. Caminhei pela Paula Freitas, entrei na Avenida Nossa Senhora de Copacabana e segui em direção ao teatro. Final de um domingo imprensado em feriadão, calma total. Cristo morto, Cristo ressuscitado. Tédio. Ou quase. Um grito, um choro, um pedido “Não me bate, moço”. Assustado, vi-me diante de uma cena cruel. O segurança de uma farmácia segurava um jovem negro pelo braço e descia-lhe a porrada, sem dó, inclemente, como um centurião romano e seu chicote. O garoto, magro, com jeito de quem estava dopado por álcool ou qualquer outra droga, caiu na calçada. O segurança partiu para cima, como quem, faminto, avança num prato de comida. Mão fechada, punho-aríete, na cara, sem titubear. O jovem chorava um choro sentido e, para mim que me peguei surpreso com tudo aquilo, sem sentido. Ou seria fingido aquele choro tão eloqüente? Vá saber! Mas que era dolorido ouvi-lo lamentar a queda, a surra, era. Uma mulher tomou as dores da vítima e protegeu-a de mais pancadas. Ele, recompondo-se, sentou-se no meio fio, cabeça baixa, mofino. O segurança, exaltado, discutia com a boa samaritana deste domingo. A tudo assisti, passivo, incrédulo, estático. Aquilo estava mesmo acontecendo? Retomei a minha caminhada, devagar, ouvindo o choro do rapaz, agora ecoando em mim. Dois jovens, o futuro perdido nas ruas de Copacabana. E eu, sem desviar de meu caminho, segui para a Sala Baden Powell para ouvir Francisco Mignone, Villa-lobos e outros desconhecidos compositores brasileiros.

Cenas de Copacabana - O velho




foto: João Gabriel A.










Experimente ler a crõnica ouvindohttps://www.youtube.com/watch?v=rZ13bQvvHEY


Ele passa numa elegância antiga, orgulhoso, é a própria heráldica do mofo em movimento. Sabe-se lá como armou-se de coragem e enfrentou as dores na coluna, no joelho direito e na bacia, superando os estalos da prótese no quadril e falta de ar para pisar a rua. Ainda posso e devo, deve ter pensado quando saiu de casa. Munido de toda a resistência e auto-estima, caminhou por Nossa Senhora de Copacabana sem o auxílio da bengala. Senhor de si, forçando a espinha contra o céu, o olhar no horizonte de carros e gente, desfilou como há muito não fazia entre camelôs, guardas municipais, gente comprando e vendendo, turistas cheios de areia. Empertigado, viril, varão. Assim ele se enxergou naquele passeio no finalzinho da tarde. De longe, fiquei observando o que se passava dentro dele, consigo enxergar o interior das pessoas, faz parte de meu trabalho como escritor, e eu vi a alegria quase infantil de sentir-se jovem e forte, apesar das oito décadas de uso. Por fora, não via o que todos constatávamos, mancava tristemente, passos trôpegos, lentos, arrastados. Por dentro, julgava-se um homem ainda jovem. Por fora... Era evidente que se forçava a caminhar naquele passo sem escora, sem apoio, mas isso não importava, havia um grande descompasso entre sua visão das coisas e as próprias coisas. Uma distância imensa entre intenção e gesto, mas isso não importava. Ele se via imbatível e nós o víamos tão frágil. Na certa, relembrava antigos passos numa noite morna de um dezembro, em fins de 1950, cigarro no bico, perfume no pescoço, uma bossa novíssima na vitrola de algum apartamento, e a imagem do Cristo, de braços abertos na esquina da Siqueira Campos com a Toneleiros, convidando para a vida. Hoje, passeando com meu cão, percebi sua presença orgulhosa. Passou claudicante, tentando conter a tosse, pulmões fracos e distantes da nicotina ha duas décadas, por ordem médica. Um vendedor de discos piratas tocava um funk escabroso na calçada. Ele não ouviu, pois o aparelho auditivo já não era de grande valia. Cruzou a Barata Ribeiro, no sinal em frente ao Pavão Azul, e sumiu lentamente num pequeno edifício na Hilário de Gouveia. Nessa noite, dormiu feliz como há muito não dormia e nem lembrou que o mesmo Cristo, de braços abertos, parecia convidá-lo para curtir a lua.

Leia a crõnica ouvindo: https://www.youtube.com/watch?v=rZ13bQvvHEY




Cenas de Copacabana - Na rua


foto: João Gabriel A.










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Noite dessas, subindo pela escada rolante na estação Siqueira Campos do Metrô, saída Siqueira Campos, ouvi a mulher do casal estacionado no degrau acima do meu “Se eu fosse você, não me seguiria”. Ele, com olhar de choramingo, insistindo “Vou até o fim com essa história, já passou da hora”. Era uma mulher cuja maturidade, denunciada por algumas mechas douradas e rugas nos cantos da boca, não conseguira apagar uma beleza jovial. Soprava nela ainda o vento dos dezessete aninhos. Entre as rugas, uma adolescente com gostinho de sal e maresia ainda desfilava. Parecia incomodar-se com a decisão aparentemente inflexível do parceiro. “Suzana, para de ser boba. Eu vou sim, vou mesmo”. Ele, um cara de barba e poucos cabelos, grisalhos, ostentando uma barriga orgulhosa de anos de chope – deduzi – acariciava os cabelos da mulher que repelia o assédio, sem convencer a ninguém. “Kiko, já conversamos mil vezes sobre isso. Não rola, cara. Vai dar merda! Para!” Eu, logo abaixo, deslizando para cima, aguçava os sentidos, precisava saber o que estava se passando. Como qualquer pessoa, muito curioso, queria saber o que ia dar merda. Voltava da Cinelândia, depois de uma tarde cansativa sob o calor tremendo desses dias. Fui visitar um amigo livreiro que mantém seu acervo de livros raros numa sala no décimo nono andar do edifício Municipal, bem ali ao lado do Teatro e da Assembleia. Depois de passar a tarde entre os quadros do Museu Nacional de Belas Artes, emendei com uma visita ao Moacir e seus livros. Conversamos sobre o tempo e sobre o passar do tempo, folheando velhos livros maravilhosos. Por volta das 21 horas, cansado do estirão do dia, ele acendeu um baurete e eu resolvi pegar o metrô em direção a Copacabana. Tudo o que eu queria era tomar um banho frio e abrir uma gelada, comer umas pataniscas, esticar as canelas diante da televisão. Na estação Botafogo, entraram Suzana e Kiko no vagão em que eu estava. Olhando o casal, me pego a imaginar sua história. Mania de escritor inventar vidas. Filhos? Viagens? Apertos financeiros? Brigas? Acho bonito quando um casal demonstra afeto em público, ligando um foda-se ao neopentecostal mais próximo, e Kiko não poupava Suzana de beijinhos na orelha, no pescoço. Ela, fingindo timidez, sorria de forma cativante emitindo uns trinadinhos, e cativava o Kiko, que insistia em explorar cada pedacinho de Suzana. Era um jogo gostoso de se ver, gato e rato prestes a se comerem, eu deduzi. Quando o carro parou na estação Siqueira Campos, ouvia ela dizer, respondendo a algo que ele sussurrou em seu ouvido, “Nem pensar. Tá maluco, Kiko? Endoidou, bicho?” Pronto. Naquele instante, mais que nunca, aquele casal conquistou minha atenção. Porque maluco? Qual teria sido a proposta? Mil pensamentos e imagens. Afrouxei o passo com a intenção de ficar perto deles, que vinham logo atrás, abraçadinhos. Ele sorria, como antes, mas algo nela mudara repentinamente. Estava apreensiva. “Não acredito que você vai mesmo fazer isso”, ela se desesperava e seu desespero parecia não incomodar o Kiko que a abraçava, puxando-a para perto de seu corpanzil. “Vem, cá, vem. Deixa de ser medrosa. Fica calma. Confia em mim, pô!”. Eu, cada vez mais curioso, não conseguia imaginar o que movia aquelas reações de Suzana e a aparente inflexibilidade do Kiko. “Você não confia em mim? Eu me garanto, porra!” Ela saltou da escada rolante e parou logo a frente, olhando pra ele, mudando o tom do discurso “Ah, meu amor, não é isso. Você não tem ideia do que vai acontecer se você insistir nessa parada”. Que parada, meu Deus? Que ideia? A vontade era entrar na história e perguntar-lhes na cara de pau. Saíram andando e eu, um stalker fajuto, tentando captar a conversa. Dobraram à esquerda na Toneleros e seguiram em frente. Fiquei parado, feito besta, na entrada da Hilário de Gouveia, observando o casal sumir no escuro. Nunca saberei o que o Kiko queria fazer e a Suzana tentava impedir.



segunda-feira, fevereiro 24, 2020

A peste branca


A peste apareceu em minha vida na forma de uma notícia assustadora, com sabor de ficção, irreal, forjado, artificial; veio como uma peça, uma traquinagem, uma mentirinha, uma brincadeira de mau gosto; surgiu, enquanto almoçávamos,  na expressão de seriedade ensaiada da apresentadora de um telejornal, com jeito de coisa escandalosa, recheada de sensacionalismo barato, como um bizarro ingrediente entre receitas culinárias, notícias da crise financeira mundial e os gols da rodada do campeonato brasileiro de futebol, enfim, apenas uma notícia a mais na pauta daquele dia. Depois veio estampada em revistas, em manchetes de tablóides - ambrosia para o apetite voraz da imprensa marrom - sempre num tom apocalíptico, coisa que, por estarmos bastante acostumados à histeria típica dos profissionais da comunicação de massa, não nos fazia levá-la muito a sério, apenas um modismo, disse meu pai tragando o seu cigarro; em pouco tempo, julgávamos nós, incautos, encontrariam uma catástrofe mais interessante para povoar nosso imaginário do fim dos tempos. Mas a coisa mostrou-se não ser bem assim, e isso ficou claro quando, depois de uma alardeada visita de médicos e pesquisadores americanos e europeus à região de Mosoto, no interior do Zaire, foi detonado um artefato nuclear naquele país, eliminando, em fração de segundos, toda uma população de portadores e não portadores da tal peste, riscando inapelavelmente do mapa, cidades, vilas e povoados daquele país africano, que ousara abrigar o nascimento da doença.  Pouco tempo antes dessa tragédia, alguns casos isolados começaram a pipocar na França, na Alemanha e nos Estados Unidos. As autoridades sanitárias desses países tranqüilizavam suas populações afirmando que a epidemia era um fenômeno isolado e que já estava em curso um grande plano de contenção da peste. Por meio desse plano, que os jornais divulgavam em tom de descrença, foram adotadas medidas drásticas que, por sua natureza, revelavam a situação crítica que os políticos tentavam camuflar a todo custo; assim, respaldados no terror da coisa desconhecida e poderosa, fecharam aeroportos, bloquearam a entrada de qualquer indivíduo ou produto proveniente das regiões-foco, enviaram forças militares para, inutilmente, empreenderem um cerco a países africanos que apresentavam sinais mais graves da epidemia; votaram verbas extraordinárias para pesquisas e para a construção de misteriosos abrigos de concreto que, mais tarde, pela televisão, viriam mostrar-se de uma utilidade no mínimo macabra. O que não sabíamos, embora desconfiássemos, como avestruzes diante do perigo iminente, é que a peste estava fora de qualquer controle e que, até àquele momento, não havia solução alguma que pudesse contornar o sacrifício de toda uma nação, como acabou acontecendo com o Zaire. A comoção internacional, naquela hora, só não era maior que o imenso terror que tomou conta de todos. Acompanhávamos as notícias ansiosamente, buscando uma luz para aquilo que parecia ser o maior dos pesadelos: finalmente a natureza conseguira forças suficientes para nos expurgar da face da terra. Lá no fundo de cada um de nós batia aquela esperança de que tudo não passasse de um angustiante pesadelo, que de repente todos acordaríamos e respiraríamos aliviados. Ledo engano. Os ecologistas avançavam suas críticas sobre o progresso tecnológico descontrolado e amoral, acusavam as pesquisas genéticas de serem a causa do surgimento da doença. Até então o que se sabia era que o vírus era incomparavelmente mais destrutivo e mutante que qualquer outro já registrado. A peste manifestava-se de maneira traiçoeira, pelo ar, pela água que bebíamos, pelo toque, pela secreção, pela saliva, pela picada de um inseto contaminado, pela ingestão de carnes ou vegetais que de alguma maneira tivessem mantido qualquer contato com o vírus - batizado apropriadamente por cientistas indianos que o isolaram como HArmagedomV. A vítima manifestava inicialmente os sintomas de um simples resfriado que, em menos de 36 horas, após infestar os pulmões, obstruía os brônquios, impedindo a respiração, matando-a, após dolorosa agonia, por asfixia radical. Tudo limpo, sem manchas, marcas, caroços, tumores, suores ou sangramentos. Uma peste branca, como acabou conhecida. O pior de tudo era a constatação de que o vírus não mantinha um padrão de incubação. Não se tinha ideia de quando ele dispararia a tragédia, semanas, meses, anos? Isso era o pesadelo de todo cientista. Impossível prever quem estava contaminado a tempo de impedir sua propagação. Mas a solução final adotada pelos americanos no caso do Zaire, mostrou-se ineficaz. O vírus já se fazia notar em outros cantos do planeta e era impossível conter seu avanço. Obviamente não iriam explodir todos os continentes. Os casos se multiplicavam em progressão geométrica, sem controle, sem esperança. Sabíamos que nos grandes laboratórios de pesquisa travava-se uma luta desenfreada contra o relógio que, inexoravelmente, parecia apontar o extermínio da raça humana. E era essa a terrível expectativa que tínhamos, o fim de nossa espécie. A peste selecionara a vítima ideal de sua carnificina: o homem. Nenhum outro ser vivo do planeta era atacado por ela. O enigma maior estava justamente em identificar o que nos tornava objetos exclusivos do desejo letal do vírus. Lembro-me de meu pequeno irmão traçando sua teoria, dizendo-nos que talvez o “bichinho” - como gostava de chamar o HArmagedomV - gostasse apenas de bichos que pensassem. Enquanto meu pai e meus dois outros irmãos riam dessa estapafúrdia teoria, eu mastigava-a como uma hipótese viável. Porque não? Não poderia ter sido justamente nossa razão e nossa ganância a causadora disso tudo? Quem me garantia que esse vírus não fosse fruto realmente de nossa intervenção na natureza, através da poluição, das pesquisas genéticas, das armas químicas, bacteriológicas, do lixo atômico, dos testes nucleares? Quem? Nenhuma região do mundo estava imune à peste branca, os casos surgiam aos milhões, da Nova Zelândia à Portugal, do Uruguai à Groenlândia, do Hawai à Paraíba, indiferente à cor, raça, credo, sexo, idade, ideologia; nos grandes centros urbanos como Nova York, São Paulo, cidade do México, Rio, Buenos Aires, Londres, Teresina, as pessoas estavam morrendo como moscas; tentavam fugir inutilmente para o interior do seu país, onde a peste já havia se instalado e ceifava vidas do mesmo modo. Finalmente éramos uma macabra aldeia global. Nos países mais pobres a situação era caótica, famílias inteiras dizimadas, gerações que sucumbiam à fome da peste, corpos incinerados aos milhares em praça pública, choro, desespero, dor. O quadro repetia-se nas nações ricas, a diferença estava na forma de eliminação dos cadáveres contaminados. Em tempo recorde, construíram enormes sepulcros de concreto onde, coletivamente, eram lacrados os corpos das vítimas. No geral, a paisagem de dor e desespero repetia-se em Paris ou Bogotá, a fragilidade humana era a mesma diante do inevitável. Quando o Papa sucumbiu à peste, uma das últimas notícias internacionais que nos chegaram naquela época, a impressão que tínhamos era a de que não haveria mais milagre, que tudo estava irremediavelmente perdido, que era chegada a hora do apocalipse. Estava formado o terreno fértil de onde brotaria, com vigor medieval, o fanatismo e sua legião de profetas. Era o fim do mundo, o juízo final, gritavam nos quatro cantos do mundo. É o castigo pelos nossos pecados, nós o merecemos, tentavam nos convencer. E convenciam os ingênuos, os desesperados. Multidões reuniam-se para cantar, rezar, chorar seus mortos, clamar a Deus por suas vidas, esperando o fim iminente. E nessas multidões a peste encontrava o ambiente perfeito para exercer seu ofício, disseminando-se como reação em cadeia, propagando-se como o rompimento de uma barragem, uma bomba nuclear orgânica de efeito devastador. Quando os primeiros casos aconteceram em nossa rua, meu pai, desesperado, arrancou-nos da cama, de madrugada, e nos levou para um terreno de chácara, a alguns quilômetros da cidade. Nesse lugar, que dificilmente visitávamos, ele mantinha uma pequena e variada plantação, que era muito bem cuidada por Clementino. Sua intenção era retardar o máximo possível qualquer baixa em nosso pequeno exército, eu, ele e meus três irmãos, isolando-nos do resto do mundo. Por isso partimos na calada da noite, lenços brancos enrolados no rosto, como bandidos de filmes de cowboy, em silêncio, o coração batendo forte. Eu sabia que estávamos nos despedindo de nossa casa, nossa rua, nossa cidade, enfim, de nossas vidas. A rua escura abrigava, em algum lugar, o famigerado predador invisível. Meu pequeno irmão, que não apreendera ainda a dimensão de tudo aquilo que se passava ao seu redor, brincava de bang bang, matando com seus tiros de mentira os raros transeuntes daquela madrugada.  Minha mãe, costumava dizer meu pai, tinha tido a sorte de, falecendo no parto de meu pequeno Durango Kid, não presenciar o fim de tudo. Qualquer espirro, tosse, era motivo para que ele se alarmasse, isolasse o sintomático do resto do grupo e observasse atentamente, numa aflição gritante, o desenrolar daquele espirro, daquela tosse. E não é o caso de se falar aqui em paranóia, era necessário agir assim, a peste branca não mandava aviso, não escolhia hora, vítima ou lugar. Simplesmente desabrochava, uma flor tétrica, após um espirro, e tudo virava pavor no lar amaldiçoado com seu perfume. O caos foi crescendo lentamente; com a morte de milhões de pessoas, as atividades diárias foram simplesmente desaparecendo, não havia quem operasse as usinas, as fábricas, os trens, as câmeras de televisão; não havia quem ministrasse cultos, aulas, missas, velórios; não existiam mais aqueles que vendessem ou comprassem, que obedecessem ou mandassem, que elegessem ou roubassem; não havia mais quem enterrasse os mortos, quem lhes fornecesse a extrema-unção, quem cuidasse dos doentes, dos jardins, dos parques, dos animais no zoológico, quem fizesse sexo, quem fizesse partos; em pouco tempo, dizia meu pai, à luz de velas, não haverá ninguém para morrer, a peste terá terminado seu trabalho, comerá a si própria. Não tínhamos notícias dos parentes, dos amigos, vizinhos. Na certa estavam mortos e apesar de toda a dor que sentíamos, ninguém, em sã consciência, se arriscaria a voltar à cidade para confirmar a terrível suspeita. Estávamos todos juntos, plantando o que comíamos; bebendo, após fervida, a água de um poço artesiano, sem notícias do mundo, sem luz, sem gás, sem remédios, sem esperança alguma, apenas sobrevivendo, e eu me perguntava: Para quê? E meu pai dizia: apenas porque estamos vivos, por isso insistimos. As pouquíssimas pessoas que apareceram por estas bandas foram expulsas por meu pai e seu revólver. Lembro com tristeza a figura de uma mulher, o marido doente e seu filho, implorando ajuda, pedindo comida, e a voz dura do meu pai, à uma distância que julgava segura, ameaçando-os. Tentei argumentar em favor deles e em troca recebi um dolorido cascudo na testa. Vi quando a mulher sumiu na estrada de terra, arrastando o pequeno pela mão, o marido apoiando-se em seu ombro, tossindo, tossindo. Havia três meses que estávamos aqui, quando a monotonia foi quebrada pela febre repentina de meu irmão mais novo. Ela chegou sem tosse, sem espirro, mostrando-se orgulhosa no bastão de mercúrio que meu pai retirara da axila do pequeno: 38 graus. Notei no meu pai o olhar de tristeza e pânico. Como de praxe nessas ocasiões, meu irmão foi isolado num quartinho no fundo da casa, onde, durante todo o dia, desdobramo-nos em cuidados, levando comida, água, tudo sem contato algum, por uma pequena abertura na porta. Meu irmão, o pequeno prisioneiro, chorava e tremia sua febre na solidão daquele quarto, e nós, logo ali, sem nada podermos fazer além de aguardar o previsível desfecho. Antes que a peste levasse meu irmão, caiu meu pai em desgraça; logo ele que, descumprindo as regras básicas de sobrevivência, por ele mesmo criadas, ousara abraçá-lo um dia, aos prantos. Depois caíram meus outros irmãos e Clementino. Um a um foram-se de minha vida, sem apelação, sem socorro, sem nada. Em menos de três dias, pateticamente, tornara-me o único ser vivo daquela casa. Já não chorava mais, não tinha mais sentimento, nem dor, nem saudade. Nada. Virara uma planta, uma coisa. Enterrei-os lado a lado, no fundo do terreno, embaixo de uma árvore, numa cova que meu pai, precavido como sempre, mandara abrir antes de ser abatido pelo HarmagedonV. Meses se passaram sobre minha solidão. Não sei se existe alguma alma viva neste mundo, mas escrevo este relato sem me importar se algum dia encontrará algum leitor. E não é assim a arte de qualquer escritor? O último pedaço de vela queima sobre a mesa, deixei portas e janelas abertas ao vento, que entrem os sussurros dos fantasmas, que apascentem as baratas;  uma dormência me invade lentamente. Há dois dias comecei a tossir um pouco, mas creio que não tive febre. Lembro-me de meu pai e digo para mim mesmo: escrevo por que vivo, simplesmente por isso, escrevo.

sexta-feira, novembro 22, 2019

Tipos de Copacabana – A moça da Domingos Ferreira


Não vi seu rosto, nem precisava. Não carecia de ver nada, pois já enxergava tudo. Todas as moças andavam graciosas naquele corpo que passou por mim, atravessando a Domingos Ferreira, na manhã de sol. Naquele vestido roxo todas as moças do mundo. Rosa? Maria? Dolores? Que nome carregaria a carne? Que nome batizaria o espírito? Que nome arderia tatuado em sua pele branca e em seu coração de moça? Eu nunca saberia, lamentei.
Não notou meus olhos bestas diante de sua aparição, passou como quem andasse numa esteira rolante, olhar fixo no horizonte, sem se dar conta de mim. Fiquei algum tempo impressionado com o movimento de sua cabeleira sobre os ombros. Nada super, nada hiper, apenas pêlos muito lisos e negros – seriam de índia? Seria índia a minha moça de vestido roxo? A minha garota de Copacabana? – que transpareciam um perfume que só aspirei em pensamento. Ah, como são doces os cheiros imaginados! Como são belos os rostos nunca vistos, porém desejados, como o da moça que partiu pela rua balançando cabelos e nádegas sob o calor da manhã.
Para onde ia com aquela graça e pressa? Encontrar-se com amigos? Amante? Buscar seu poodle na Pet shop? Ah, talvez a minha moça estivesse atrasada para uma entrevista de cobiçado emprego. Isso! Secretária de uma pequena firma de importação e exportação de vestidos roxos e perfumes inexistentes. Consultora de uma empresa de tecnologia metafísica. Atendente de um escritório de tabulação de esperanças e expectativas. Quem o saberia além de mim?
Vi, sem propriamente ver, vi em visão, visagem, que ela sorria, e que sorriso! A leve contração dos cantos da boca, os lábios delicados esticando o batom roxo que acabara de passar com capricho, para combinar com o vestido. E tudo isso interferindo em todas as esferas, derrubando astros, provocando furacões lá longe onde flambam caramujos, descrevendo arcos e órbitas e planetas e cometas que explodiam em constelações coloridas. Ah, como o desejo caminha caminhos impressionantes. Tudo isso vi e era belo. Mas não vi com olhos, que sempre maculam a imagem real, contaminando o que deveria ser com o que materialmente é. Vi com a vontade e com o desejo e por isso eram belos o sorriso e a cor do batom que usava a minha moça da Domingos Ferreira. Tudo perfeito.
Hoje, um pouco cego da vontade e do desejo, que naturalmente se esgotam com o arrastar-se do carro da existência, quando morremos, lanhados corpo e espírito, quero me convencer de que a sua aparição naquela manhã de sol, fugaz e perene como toda ambulante manifestação do espaço no tempo, veio trazer a luz em que meus olhos míopes precisam mergulhar e que meu espírito escuro anseia absorver. Pura epifania.
A moça de roxo veio cobrir com sua juventude, perfume e movimento, a lassidão de meu olhar e corpo contemplativos, como uma pequena deusa de cabelos negros manifestando-se diante de um velho e arrancando dentro dele um menino que seguiu com ela, apertando-lhe a mão.

segunda-feira, junho 17, 2019

O “Canto escuro” de Daniel Barros



Imagine o seguinte cenário: você é um servidor público honesto, decente - como a maioria dos servidores públicos, mas você percebe que está no meio de um esquema de corrupção que envolve altos escalões do governo. Ao desconfiar que você pode estar sendo maquiavelicamente envolvido nessa história, você passa a desconfiar de tudo e de todos e procura, para sua própria segurança, a ajuda de amigos da polícia, para desbaratar essa quadrilha poderosa, correndo risco de vida. Este é o enredo de “Canto escuro”, último romance do alagoano Daniel Barros (Penalux, 2019).

Embora, aparentemente, o tema remeta de forma previsível à perspectiva de um romance policial, a narrativa desenvolvida com engenho pelo autor não se enquadra totalmente no gênero, pois, apesar da investigação do esquema de corrupção, o que se observa na história, desenvolvida em quatro partes, é a construção de um protagonista, Paulo Henrique, o funcionário público, a partir de suas aventuras e desventuras amorosas – que são muitas –de  seu problema com a bebida e com as mulheres, do seu drama baseado num eterno conflito conjugal e, é claro, do seu papel na investigação do esquema.

Daniel optou por antecipar a história na primeira parte, oferecendo ao leitor um gostinho prévio do que encontrará no decorrer da narrativa. Essa estrutura se mostra inteligente, pois o estranhamento inicial nos provoca a curiosidade. A partir da segunda e terceira partes, o autor desenvolve a história com habilidade suficiente para prender o leitor. A dinâmica do texto se dá a partir dos capítulos curtos que se sucedem numa velocidade que aumenta a cada página.

As cenas de amor são ingrediente importantíssimo desse prato degustado com avidez pelo leitor. Elas são importantes, pois é justamente a partir dessas cenas que entendemos a faceta “mulherengo” do protagonista. Sem cair na armadilha do vulgar, do chulo, as aventuras sexuais de Paulo Henrique nos são apresentadas pelo narrador e pelo próprio protagonista, em primeira pessoa, com a descrição elegante do encontro de um homem e uma mulher. A sucessão de mulheres, prostitutas ou não, torna Paulo Henrique uma espécie de Don Juan ébrio, pois o álcool parece fazer páreo duro nas predileções do personagem.

Envolvido diretamente no processo de contratação para o serviço público, e sabemos que toda área de contratação é alvo de lobistas e esquemas fraudulentos, Paulo Henrique, que ocupa um cargo importante na repartição, percebe movimentos estranhos na tramitação de processos que envolvem políticos. A desconfiança com relação à sua chefia imediata faz com que tente se proteger agindo como informante da polícia. A história acompanha o drama do servidor público que, além de lidar com a eventual perda do cargo que ocupa, por conta de sua recusa em integrar o esquema, tem que se preocupar com os problemas de sua vida pessoal que se encontra em crise (álcool, amores perdidos, ciúmes, a paternidade, etc.)

O romance agradará a qualquer leitor que se interesse por uma narrativa ágil, objetiva, inteligente e, acima de tudo, que toca num tema de atualidade inquietante: a corrupção em todas as instâncias do país. Daniel Barros mostra-se hábil construtor de uma história que nos fisga e que nos faz vibrar com um final empolgante, como uma espécie de gol da vitória aos 45 minutos do segundo tempo. Fica a dica: “Canto escuro” (Penalux, 2019), de Daniel Barros.

terça-feira, agosto 28, 2018

Os Anjos










This he said to me
"The greatest thing you'll ever learn
Is just to love and be loved in return"
Eden Ahbez

Para Lincoln



A poeira provocada pela passagem do carro que carrega os exterminadores já pousou sobre as coisas vivas e mortas. O ermo é paisagem, quase miragem. Nada além de um chiado leve, gemido, indicando a presença do sofrimento onde parecia nada haver. Visagem. Assim, devagar, bem devagar. Primeiro uma gota, escura, amarga, exalando um cheiro horrível de podridão e dor, caindo para... de, não importa mais. Sem barulho algum além do da respiração ofegante e agoniada, no compasso da desgraça e do desespero que parecem se findar na marcação do metrônomo da tragédia. Gotas várias de um sangue muito negro e fétido escorrem pela terra, vermelha terra do cerrado, mergulham nas raízes da sibipiruna, alimentando a matriz exposta do capim seco prestes a arder-se em chamas... Longe, a escuridão pesada do abandono e da ausência de carinho. Só dor, profunda dor que preenche cada espaço do pensamento que tende a não mais pensar. Não é possível mais sentir onde não dói, onde não sangra, onde não fede, onde não escapa a seiva vital. Tudo massa disforme e pútrida, ainda movendo-se sobre e sob a respiração que parece desaparecer, assim, devagar, bem devagar. Envoltos em fita crepe, sob carne macerada que expõe ossos partidos, tutanos, artérias e tendões e alguns dentes arrancados, há sonhos que nunca se realizarão e outros que, realizados, se perderão na decomposição da matéria e repousarão, carbono e fósforo e potássio e cálcio, na frialdade inorgânica da terra; prazeres que nunca serão gratificados, gozos que não serão gozados, sêmen que apodrecerá na origem; medos que não terão mais razão de existir, pois a escuridão adentrou definitivamente o espírito; leituras que se perderão sob a o último lampejo neuronal e que levarão consigo, para lugares insuspeitados, os machados e clarices e rosas e pessoas e dantes e goethes e augustos e; sorrisos e lembranças e resquícios de outros corpos que não mais existirão ali, ali naquele monturo, naquela coisa, naquele traste, naquele treco, naquele troço, naquilo que já foi ha pouco um homem e que agora poreja, goteja um líquido escuro e de odor insuportável. Aquele pacote envolto em fita crepe, assim imobilizado para o exercício da pancada e para a delícia do mais profundo e escuro prazer bestial, com pêlos saindo pelas frestas manchadas de sangue e pedaços marcados de carne, foi um dia o amante que fodeu e foi fodido, que gozou e foi gozado, que deu prazer e recebeu prazer; o amigo que abraçou e que beijou e que chorou a ausência e que perdeu o sono e que sentiu sede e que chorou em Cinema Paradiso e sorriu em Morte em Veneza e que xingou o guarda de trânsito e que lamentou a perda de cabelos e o ganho de peso e que telefonou de madrugada se desculpando por ter esquecido o teu aniversário e que detestava comer fígado mas adorava carne moída com batatinha e ervilhas e que nutria o mais íntimo desejo oculto de fazer sexo grupal e que se preocupava com o fato de estar chegando aos trinta sem ter adquirido uma casa e que ultimamente andava insone por causa de; aquele objeto encolhido ao pé da árvore seca do cerrado continha o cidadão que reclamou na fila do banco e que votou para eleger o presidente da república. Aquela escultura de carne triturada, argamassa de tecido e sangue, um dia foi o sorriso que encantou mulheres e homens, o menino que soprou as cinco velas de um aniversário que, ocorrido há vinte e três anos, não mais existirá, a não ser nas fotografias guardadas na lembrança de um vulto feliz de mulher; foi o estudante que declamou poemas de Florbela Espanca...espanca. Ontem ainda acreditava num futuro. Mesmo quando, colhido pela inexorabilidade da peçonha e da traição, encarou a figura da morte e da crueldade, ainda havia dentro dele, pequenina, a esperança de que se lembraria daquilo um dia com pavor, mas vivo e pleno. Quem algum dia saberá realmente? Agora, parece não haver mais movimento no meio daquele espetáculo de sangue e fita crepe. É o último dos instantes, o ínfimo, o limiar. Tudo o que é efêmero é somente preexistência; O humano-térreo-insuficiente aqui é essência; O transcendente-indefínível é fato aqui; O feminil-imperecível nos ala a si. Só pequenos répteis e insetos presenciaram o momento em que, após Murdad, cortando o fio primordial que nos faz ser, separar com as mãos de éter e mistério o corpo da alma, Azrael, o imenso anjo de quatro mil asas e bilhões de olhos e línguas, desceu do não-onde-e-sempre trazendo a indesejada das gentes. Agora, apenas o vento seco do cerrado envolvendo o corpo sem vida do rapaz, assim, devagar, muito devagar.

quinta-feira, agosto 10, 2017

O Tecido da História



De que tecido é composta a História? Qual a matéria que forma os ídolos, os grandes eventos, as lendas? Enfim, de quantas pequenas e grandes mentiras é feita a verdade da História?  Em “Sitiado” (Editora Chiado, 2017, 210 p.), o escritor Edmar Oliveira toca nessas questões com grande elegância, criatividade e humor. Seu romance constitui-se de uma urdidura ficcional que permeia os fatos históricos que marcam a passagem, pelo Nordeste, da Coluna Prestes. Na verdade, o romance focaliza o cerco empreendido pelos colunistas à capital do Piauí, Teresina, cidade onde formou-se o escritor. A estratégia narrativa privilegia os diversos pontos de vistas dos personagens/testemunhas do evento histórico, pondo em destaque aqueles que sempre são meros coadjuvantes, pequenas engrenagens do carro da História. O olhar quixotesco de Teodoro, um pequeno proletário cheio de sonhos e fantasias, que, enviesado, confunde as histórias dos Pares de França, do clássico texto de cordel, com a situação histórica da qual participa ativamente. É pelo olhar de Teodoro que o autor se permite desarmar a versão oficial, abrindo possibilidades outras para a explicação de determinados eventos históricos. Nesse sentido, guardadas as devidas proporções, “Sitiado” é um texto irmão de “Viva o povo brasileiro”, de João Ubaldo Ribeiro. O intertexto, ferramenta fundamental na construção de “Sitiado”, configura-se na adoção, por analogia, das narrativas de cordel de autoria de Leandro Gomes de Barros, especialmente a história de Carlos Magno e “A história da donzela Teodora”, de onde o autor extrai as epígrafes de cada capítulo. As narrativas populares encontram eco na visão de mundo do matuto Teodoro e tornam a leitura de “Sitiado” num pequeno jogo de aproximações. Depreende-se dessa leitura que, no fim das contas, não existem fatos, mas versões de fatos. A História, podemos entender, é uma espécie de literatura de ficção que se quer absolutamente verdadeira, sem poder sê-la, pois a visão do historiador é sempre um recorte da realidade, assim como a versão das testemunhas trazem sempre seu ponto de vista. Se para Teodoro, o cidadão piauiense, suas leituras demandam o intertexto de cordel, outro personagem importante na narrativa, o imigrante de origem libanesa Abdon, incorpora os contos/causos do popular personagem turco Nasrudin. Em contraponto às diversas situações por que se depara o personagem, as narrativas do quase folclórico Nasrudin costuram humor e crítica refinados. Abdon, assim como Teodoro, ingressa na Coluna Prestes cheio de sonhos. O primeiro, pragmaticamente, vê-se colunista como forma de resolver um problema financeiro com o patrão. Julgando-se explorado, acredita que a Coluna trará um mundo melhor e aposta nessa possibilidade, ingressando em suas fileiras. Teodoro por sua vez, contaminado pelas fantasias cavaleirescas e pela sincera intenção de mudar sua situação de vida, abandona a farda e segue ao encontro de seu Carlos Magno. Esses dois personagens poderiam sustentar, sozinhos, toda a trama, e o fazem com coerência e substância a partir da construção literária empreendida por Edmar Oliveira que, não se contentando com isso, ainda nos traz a figura emblemática do Lenine do Maranhão, figura interessantíssima que, por si só, seria capaz de compor uma grande história. O personagem, baseado numa figura histórica real, atravessa a narrativa como um relâmpago. De revolucionário político torna-se ao final da vida um místico, cumprindo uma trajetória no mínimo peculiar de alguém que parte de Lênin para tornar-se Antonio Conselheiro. Curioso lembrar que sua vida nos remete à lembrança do processo de mudança em Tolstói que também, na velhice, abandona sua vida mundana e foge para a morte em seu misticismo. A galeria de personagens nos traz a figura de Geraldo, articulador político silencioso. Os personagens femininos são construções que ideologicamente se afastam: por um lado, Donana, mulher empreendedora e romântica, paradoxo que se resolve com a sua decisão de mudar de cidade por sugestão de um novo amor. Do outro lado, Ceiça, humilde e simplória. A primeira, dona de uma pensão, apaixonada pelo libanês Abdon, persegue seu desejo. A segunda, parideira, submissa ao marido, Teodoro, segue sua sina de parir filhos e sofrer ao lado do marido. Ceiça tem um quê de Sinhá Vitória, mas não tem a garra do personagem de Graciliano.

Os personagens Históricos se apresentam na narrativa a partir dos pontos de vistas dos personagens construídos por Edmar Oliveira. Assim, Juarez Távora surge como o prisioneiro garboso e poderoso que se entrega às forças legalistas e Prestes, como um fantasma, atravessa o texto sempre em fuga. “Sitiado” é uma grande coluna arrastando-se em nossas retinas, levando de roldão as gentes que fazem a História, mesmo quando dela não participam. 

segunda-feira, fevereiro 18, 2013

Hans, o banto

Contava eu, ao meu amigo Castro, as convenções que a novíssima crítica imbecil, com cheiro de mofo, prega na gente, quando me lembrei de relatar-lhe as peripécias de um conhecido meu. Tal lembrança me caiu na ponta da língua por conta de uma sua infeliz observação que muito me irritou: dizia-me ele que na formação do povo brasileiro havia um quê de preconceito para com os germanos. Ora, ora, ora. Pois não é que o Castro lembrou-me, e muito, uma figura singular da academia que costumava pregar a mesma idéia estapafúrdia? A menção a uma suposta germanofobia do brasileiro remeteu-me a esse folclórico pensador, autor de proezas fantásticas, contadas nos salões das casas do saber, e sobre quem não recai essa pequena história. Meu protagonista é outro e é com ele que passo a gastar meu verbo agora. Hans era afro-descendente (o que quer dizer, caro leitor, em bom (ou mau?) português, que Hans era negro para alguns, preto para outros, retinto para uma parte, framenguista para outra, tição pros basbaques, favelado para aqueles que atiram ovos podres da janela, bandido para esses, sarará para um bando, mano para outro, mulambo pro pessoal do Cansei, enfim, a verdade era que o menino Hans era afro-descendente, apesar do nome tipicamente alemão), pai nigeriano, mãe baiana de Santo Amaro da Purificação, terra de Canô e Caê, nascido no Hospital de Base, em Brasília, no longínquo ano de 1973. Corria no seu sangue a nobreza e a vulgaridade de antigos nobres e vassalos africanos, de escravos e reis de africabrasilis. Hans Nduka Olumayowa Santos era o seu nome estampado na certidão do Cartório do 1º. Ofício, Setor Comercial Sul, Brasília, Distrito Federal. Pai desconhecido, mãe doméstica. Como testemunhas o nome de Raimundo Nonato, brasileiro, casado, natural de Olhos d’água das cunhãs/MA, operário da construção civil, e Olindina Freitas, brasileira, casada, natural de Montes Claros/MG, do lar. Essas duas personagens periféricas da história de Hans terão suas vidas marcadas por encontros sucessivos. Olindina e Raimundo tornarão a se encontrar, talvez noutra história que eu componha, talvez só na menção destas palavras, mas com certeza aqui, na Certidão de Nascimento de nosso herói. Batismo não houve. A icterícia dos primeiros dias transformou-o num bebê magro, pele e osso simplesmente, quase sem recheio, amarelo-vilão-de-Frank-Miller-em-Sin-City, que o chá de picão, bebido às escondidas por conta da censura médica a esses remédios populares, apagou, trazendo de volta o negrume epitelial genotípico. Castro, entre uma baforada e outra, perguntou-me como o pai de Hans veio parar no Brasil. A memória e a invenção me dizem que Ngala Olumayowa chegou às terras tupiniquins como imigrante clandestino num navio de bandeira grega, o Atenaikos, que transportava leite em pó para os pobres da Bahia, doação de gentis governos europeus. Em Abrolhos, repleto de sede e leite em pó, descoberto entre sacos de batata por dois velhos marinheiros mal encarados que se masturbavam mutuamente no porão, esteve a ponto de ser jogado ao mar, como acontece com muitos de seus conterrâneos que tentam chegar ao novo velho mundo, mas a intervenção calorosa de um jovem médico alemão de nome Hans, que atendia à tripulação do Atenaikos, salvou-o de banhar-se em água salgada e ele veio, como um rei nagô de dentes brancos e olhar esperançoso, repousar num velho casarão no centro de Salvador, e foi ali, entre iguais de línguas diferentes, que ele viu, amou, engravidou, traiu e disse adeus a Maria de Lurdes Santos, a Lurdinha, empregada doméstica de um funcionário graduado da prefeitura de Salvador que, ao descobri-la grávida, após meses de uma tentativa vã de ocultar a barriga crescendo, temendo que algum de seus preservativos houvesse falhado, botou-a no olho da rua, para evitar complicações trabalhistas e paternalistas, enquanto ela, com a mesma nobreza nagô de seus ancestrais, uma mão na frente e outra atrás – perdoem-me a rima, mandava-lhe tomar no meio do olho do cu do toba, com o sotaque acentuado e cantado do Pelô. Às vezes me parece ainda ouvi-la berrar da porta da casa do Rio Vermelho: Seu Jorge, o senhor vá se foder, viu? Aproveite o feriado e rasgue seu furico. Sim, era feriado em Salvador, era 2 de julho. Lurdinha era assim, pavio curto, sem papas na língua, ousada e corajosa que só ela, e foi com essa ousadia e coragem que, decisão tomada, arrumou os paninhos de bunda e seguiu pra Brasília em um dia chuvoso de um ano de chumbo. Bucho cheio, rebentando, pariu seu filho na noite de 17 de setembro de 1971. Hans veio ao mundo esperneando como bom baiano, berrando como bom brasileiro. Nesse mesmo dia, no sertão da Bahia, morria Carlos Lamarca. Foi assim que o menino veio ter à terra brasílica. Castro, curioso que só ele, perguntou-se sobre o fim do pai de Hans. Por onde anda o sujeito? Ainda em dúvida quanto ao fim dessa personagem, respondi-lhe que Ngala sumiu num caminhão que rumava para Rondônia ou num catamarã que seguia para Fernando de Noronha. Confesso que eu não sei o que aconteceu com o pai desse amigo. Alguns afirmam tê-lo visto subir num ônibus que partiu para Maceió, outros juram tê-lo visto brigando num BaVi e, ferido na cabeça, levado inconsciente para o Hospital, de onde partiu sem rumo e sem memória e não se teve mais notícia dele. Presume-se que tenha voltado para a Nigéria ou tenha sido jogado ao mar com seus dentes de nobre linhagem africana. Outro dia me disseram que Ngala virou personagem num romance de João Ubaldo Ribeiro e que, culto e erudito que só ele, berra a plenos pulmões que sabe inglês melhor que qualquer doutor branco. Mas não posso confirmar essa versão, pois ainda não li João Ubaldo. O que lhe garanto, Castro, é que o menino cresceu nas ruas, jogando bola, batendo tambor, fazendo música, com uma delicadeza que contrastava com as rudes relações pessoais da cidade satélite em que morava. Aos 13 anos, após um troca-troca ofegante, surdo e sujo, lúbrico, com Aleixo, o filho de Dona Zilá, costureira paraibana cujo marido era fiscal de obras da administração regional de Ceilândia, o pequeno Hans sentiu-se arrebatado e descobriu-se homossexual. Não eram à toa suas ereções diante do professor Eduardo de Educação Física nas aulas do Centro Educacional 24. Nem era por acaso que adorava andar em pé, em ônibus lotado, só pra sentir o roça-roça com outros meninos e homens que se aproveitavam da situação para tocarem-se impunemente. Foi numa dessas viagens lotadas, Ceilândia/W3 Sul, que o menino conheceu, primeiro no toque, depois no sentido bíblico, o corpo do Senhor Ezequiel Carlindoga. Ficaram muito amigos. Na verdade, pela falta de assunto e ignorância, Hans percebeu-se fruta, baitola, fresco, viado, e dar o cu e chupar rola, valei-me Freud, passou a ser o seu princípio de prazer. Era feliz, muito feliz. Ganhava presentes do senhor Ezequiel, passara a freqüentar os cultos da igreja evangélica onde o Pastor Carlindoga pregava a palavra do Senhor e onde, muitas vezes, o pequeno Hans sentiu a língua do senhor. Lurdinha era uma mãe compreensiva e, apesar de todas as humilhações que sofria por conta da homossexualidade do filho, sempre apoiou o pequeno Hans em sua opção. Ser baitola é ser gente, gente! Baitola é filho de Deus como todo mundo, minha gente! Ela berrava àqueles que a censuravam por não reagir com violência aos “maus costumes” de Hans. Deixem meu menino em paz, é dele, dá pra quem quiser, e ninguém tem nada com isso, apelava. Ninguém tem realmente nada com isso, nem eu que escrevo essa história. Quem sou eu? Deixemos Castro e seu amigo por instantes, pois um valor mais alto se alevanta. Ora, ingressou nessa narrativa um negro, que é gay, uma mulher que é empregada doméstica, mãe solteira cheia de coragem, um imigrante clandestino, um branco alemão bonzinho, marinheiros punheteiros, uma população pobre e periférica, um guerrilheiro morto, um narrador ágil e bem humorado, um texto cheio de intertextos, que mais falta neste tecido de letras para uma representação por cotas da sociedade brasileira? Qual o percentual necessário de mulheres e gays e negros e meninos num texto literário de autor brasileiro? Ah, dirão que este conto, escrito por autor masculino, reforça o estereótipo e valida os preconceitos de classe, de gênero, pois quando um negro surge na literatura, é ladrão, ou gay, que o diga Adolfo Caminha e seu Amaro. E mulher? Ou ela é prostituta, ou dona de casa, ou doméstica, ou gostosona, ou tudo isso junto. Essa história de Hans só faz reforçar lugares-comuns perniciosos e preconceituosos e todos os osos ruins que a nossa literatura vende ao leitor burrinho, que não sabe julgar, discernir, separar, criticar. É por essas e por outras que se faz necessário dissecar os textos publicados ultimamente, parti-los fibra por fibra, identificando sua anatomia preconceituosa. Onde estão os negros na literatura contemporânea? Berra-se! Cadê as mulheres? Vocifera-se! Este é, por acaso literário, um país de brancos e ricos e classe média? Reverbera-se! Será que apenas de Capão Redondo vem uma literatura que represente a sociedade brasileira? A sociedade brasileira é Capão Redondo? É Zona Sul? É a cidadezinha provinciana de onde partem raparigas e rapazes sonhadores e fúteis e cheios de idéias ultrapassadas que julga modernas? Exaspera-se! Pau nesses escritores, estabeleçamos uma regra, uma camisa de força, uma cartilha social e estética que esteja totalmente baseada num modelo estatístico confiável. Um modelo que esteja assentado em variáveis coerentes e que se possa finalmente escrever literatura com percentuais adequados de mulheres cultas e burras e gostosas e feias e sabonete-Araxá e narradoras. Um modelo que prescreva o nível ideal da voz feminina e masculina no mercado editorial brasileiro das grandes editoras. Estamos às voltas com uma espécie nefasta de neo-zdanovismo. Muita estatística e pouca cultura os males do Brasil são. Façamos o seguinte: Hans continua negro, mas não é gay, ele é um sedutor tremendo. Desenhemos um negro de sucesso, pois, mesmo improvável num país como este, eles existem aos montes. Continuemos nesse novo simulacro, respire fundo, suspenda a descrença, é outra a história, siga-me. Sua mãe (de Hans, não tua, caro leitor burrinho), depois de muita luta honesta, conseguiu montar uma pequena empresa de limpeza e conservação e conquistou alguns contratos com órgãos públicos, que lhe renderam uma boa quantia e contatos, esses mais rentáveis que aquela. A coisa fluía a passos lépidos (quem fala lépido hoje em dia? Só mesmo um escritor pedante e metido a besta) e D.Lurdinha investiu na educação do filho. Hans ingressou na Universidade de Brasília para o curso de Medicina e, orgulhoso como ele só, negou-se a submeter-se à seleção de cotas, por achar que seria – e foi – capaz de conquistar a vaga dispensando a seleção por critério de raça. Questão de ordem: os representantes do movimento GLS certamente sentiram-se ofendidos pela mudança de opção sexual de Hans, isso demonstra preconceito do autor e é inadmissível, disseram-me. Como pode um autor submeter-se ao patrulhamento de quem quer que seja? Alguns representantes do Movimento Negro Unificado sentiram-se traídos pelo fato de Hans não validar a ação afirmativa do processo de cotas e, ao assumir-se de forma egoísta, não pensar naqueles que dependem desse instrumento de pagamento da dívida que a sociedade brasileira tem para com os seus negros. Terrível. A representação de Lurdinha como mulher vitoriosa num mercado machista de trabalho fez com que o texto ganhasse em importância como um instrumento de valorização da mulher que se revela um ser pensante e produtivo, coisa que, para muitos autores, não é. Mas o que não contei ainda, meu amigo Castro, é que Dona Lurdinha desenvolveu alguns hábitos muito excêntricos: ela costuma produzir ovos podres e jogá-los, da janela de seu duplex na 112 sul, nos carros que passam na quadra. Hans se diverte colocando partes de cadáveres nas mochilas de seus colegas brancos do curso de Anatomia. Ultimamente anda fechado, muito calado, casmurro, converteu-se ao catolicismo, esqueceu o Senhor Ezequiel Carlindoga que, dizem, suicidou-se na quarta-feira de cinzas e abandonou as sessões no Centro Pena Branca do pai Tonico de Xangô, para alegria de sua mãe, que há tempos havia se convertido ao pentecostalismo e rejeitado seu passado bantu. Dos males o menor, ela dizia nas reuniões sociais, melhor um filho papista e comedor de hóstia do que um macumbeiro que faça despacho com frango preto e farofa, não é mesmo? Ainda hei de vê-lo chutando estátua de santas na televisão, pois o sangue de Jesus tem poder, ela dizia. Pronto, falei de sincretismo, de alta sociedade, de alunos brancos nas universidades federais, mas ainda faltam negros nessa história. Pois que venham. Hans conheceu Padre Jacó, um judeu etíope convertido ao catolicismo, e os dois sofreram uma atração imediata. Hans projetava a figura paterna no sorriso branco do amigo de batina, e este, reconhecia no jovem Hans a beleza de um Tadzio negro. Eram óbvios, para Hans, os olhares famintos que Jacó lhe enviava durante, antes e depois das missas dominicais. Evidente o clima de sensualidade que sentia quando, na casa de Jacó, discutiam poesia e religião, ouvindo a 5ª.de Mahler e isso, ao invés de constrangê-lo, excitava-o bastante. Relembrou o que sentia algumas páginas atrás, antes do texto ser mudado, e sentiu-se de novo um fresco, baitola, viado, e retribuiu ao olhar do padre com um sorriso de orgulho e virilidade nigeriana que se afogava na malha da letra, na narração caótica de um autor perdido entre representações e estatísticas. Castro, me perdoe, mas isso está complicado. Ah, leitor, quer saber? Que se fodam Lurdinha, Hans, Jacó, negros, judeus, gays, heteros, padres, brancos, católicos, ricos, pobres, a sociedade brasileira, a crítica literária e, só para não perder tempo, que se foda você também. Fazer literatura está cada dia mais inviável. Tem mais não. Chega!