sábado, fevereiro 25, 2012

A curta vida de Mariazinha

Mariazinha nasceu sem nariz, respirava pela boca e fazia um barulho danado. O pior de tudo é que, ao alimentar-se, era comum engasgar-se. Nessas horas, o desespero era tamanho que ficou acertado entre todos, pais e irmãos, que na hora das refeições, todos estariam a postos para socorrer Mariazinha em seu desespero. Na escola, como de praxe nesses casos de gente diferente, pegou logo o apelido de Maria Sem Fuça, uma corruptela maldosa de focinho. Ora, para os moleques da Centro de Ensino Médio onde cursava o segundo grau, Maria da Imaculada Graça de Almeida era simplesmente Maria Sem Fuça. Até que não era de todo feia, tinha cabelos loiros, lisos e compridos, puxados à mãe. Olhos claros, de um azul brim desbotado, puxados ao pai. Lábios grossos, puxados da mãe. Bunda larga, puxada da mãe. Pés grandes, puxados do pai. Desprovida de nariz, sua voz assemelhava-se a de qualquer pessoa muito gripada. Tinha-se a impressão de que, ao falar, Mariazinha fosse uma paciente de rinite crônica. Pior, beirava o fanho. Era católica fervorosa, frequentando a Paróquia do Verbo Divino. Curioso quando ela dizia, compenetrada, Abém. De sacanagem, pediam-lhe que repetisse palavras com M. Mamãe, Mamanguape, Mamadeira. E ouvíamos Babãe, Bãbãguape, Bãbadeira. O pai, também muito católico, costumava dizer aos parentes, tentando se enganar, que havia coisas boas nisso tudo, que havia sim um plano de Deus para Maria Imaculada. E listava suas conclusões obtusas: ela nunca vai cheirar cocaína. Não vai sentir o mau cheiro dos peidos alheios. Não vai espirrar. Nunca vão poder dizer que ela meteu o nariz onde não devia. Nunca vai ter o nariz entupido. Nunca vão lhe ver tirando meleca, limpando o salão. E assim por diante. Ele realmente acreditava nisso. Mariazinha morreu jovem, durante um assalto. Para evitar que gritasse, ladrões amordaçaram-na com fita crepe. Ela foi ficando roxa, roxa, roxa e parou de se debater depois de poucos segundos.

A história de Francesco - Auto-ajuda é tudo de bom

Numa pequena vila na região do Piemonte, vivia um jovem chamado Francesco di Pietro Paulo. Seu pai, Guido di Pietro Paulo, um próspero comerciante da região, negociava azeite de norte a sul da Itália, era um pio homem, cidadão do bem, generoso, crente, fiel, fraterno, inteligente, bondoso, enfim, um chatólatra de marca maior e destinado ao céu. Na vida desse homem bondoso, uma tristeza enorme: as mazelas físicas do pequeno Francesco. Nascera sem pernas, sem braços, coração para fora do corpo, hidrocefalia, um monstrinho. A riqueza do pai conseguiu recuperá-lo de algumas dessas trágicas situações, mas pernas e braços ainda não fazem parte de seu dia-a-dia. Certa feita, uma mulher que passava com seu filho nas proximidades da casa de Francesco, ouviu seu filho reclamar da vida. Dizia ele: Mainha, que preguiça danada. Essa vida é tão chata, mainha. Queria tanto um show de axé, mas não tem por aqui. Que tragédia, minha mãe. Ela, muito magoada com as reclamações do filho, lhe dizia: Pare com isso, Reginaldo Kleberson da Silva. Você tem braços, tem pernas, tem molejo, sabe a dança da garrafa, do carrinho, do pirulito vesgo, sabe as letras de Ivete, de Claudinha e de Brown, tem saúde pra dizer que tem preguiça, não pode reclamar da vida, menino. E deu-lhe um puxão de orelhas. Francesco di Pietro Paulo, que tudo ouvia, sentiu-se iluminado, pois servira de bom exemplo para Reginaldo Kleberson. O único problema em não ter braços e pernas, cria ele, era a dificuldade de coçar o rego em dias de calor. Isso sim era uma tragédia. Não tem coisa pior do que chamar alguém pra limpar seu rabo, depois de obrar, ele pensava consigo. E quando o serviço é mal-feito e sobram pequenas pelotas de massa fézica que, ressecadas, acabam unindo os pelinhos em torno do brioco? Isso sim é terrível, ele pensava, aquela vontade de evacuar, o tijolo saindo e puxando os pelos todos. Quer dor mais profunda que essa? Ser chamado de “cotoco” na rua não lhe apoquentava tanto quanto excitar-se e não satisfazer-se. Membro em riste e ele tendo que esfregar-se na parede, no colchão, no poste, no cão. Caos dos caos. Foi ouvindo essa história, há tempos, que eu comecei a perceber o quanto somos egoístas. É preciso, caro leitor, que você reconheça suas qualidades e seus defeitos. Você que tem braços, que tem pernas, que dança axé, do que está reclamando? Por essas e por outras é que eu rezo todas as semanas diante da TV, olhando o Padre Fulano Rossi encarar uma santa e, em transe, repetir indefinidamente palavras de ordem. Ah, fala que eu te escuto, seu boçal. É também por isso que entôo mantras e loas, de krishna e de Murti. Também por isso que freqüento centro espírita e terreiro de candomblé. Francesco di Pietro Paulo não sabe, mas é graças a ausência de suas pernas e braços, que me dá um prazer enorme quando lavo a bunda ou quando, discretamente, coço o cu.

Sobre felicidade e miséria

Recebi de uma grande amiga uma mensagem que dizia: Ele começa o dia com um sorriso. E você? A mensagem trazia uma sequência de fotos com um lindo garoto branco, num local limpíssimo, e sorriso também branco estampado na cara bem alimentada. O detalhe trágico da foto era que lhe faltavam as pernas. O menino caucasiano de sorriso meigo aparecia exibindo suas próteses e se divertindo, dentro de sua limitação, com esportes telúricos e aquáticos. Ora, é evidente que essa minha amiga queria me dizer algo como: Não seja mal-humorado, pois você tem tudo e alguns que não têm nada são tão mais receptivos. Ou, pior ainda, talvez quisesse me dizer: Não reclame da vida, tem gente em muito pior estado do que o seu.

E aí me vêm duas perguntinhas cabais: Que estado é o meu? O que ando fazendo para merecer a culpa de não querer começar o dia sorrindo?

Peguei-me a pensar nisso e cheguei a algumas crenças fundamentais que vão pautar a minha vida:

1. Eu não sou obrigado a ser feliz. Não sou obrigado a procurar a felicidade. Não sou obrigado a ser sempre meigo e doce com quem quer que seja. Felicidade é invenção da literatura burguesa. Além do amor, os escritores e artistas burgueses, especialmente os românticos, inventaram esse negócio de ser feliz e sorrir toda manhã. Schopenhauer, e muito antes dele Sidharta e todos os budistas, já tinha desconfiado de que essa tentativa esquisita de ser feliz a qualquer preço é o princípio trágico da infelicidade. Ora, se gasto meu tempo tentando ser feliz e – cá pra nós – são raros os momentos de felicidade, é óbvio que na maior parte do tempo estarei frustrado e... triste. Portanto, não me submeto a ser feliz para agradar a ninguém.
2. Porque o fato de um pobre sem pernas sorrir pelas manhãs deve servir de paradigma para toda a raça humana e fonte de obrigação? Ora, se o garoto-toco sorri nas fotos ( que nem sei se realmente é sintoma de felicidade) é porque ele tem seus motivos que não são os meus. Se a nova prótese lhe causa menos dor, isso é sim um motivo para que ele sorria, né mesmo? O fato de ser um garoto-toco, por outro lado, não é condição primeira para ser triste. Claro que não. Ser triste também não é obrigação de ninguém.
3. Mensagens desse tipo sempre trazem como princípio lógico – ou que se quer lógica – o fato de que a miséria do mundo é sempre maior do que a minha e, portanto, eu devo agradecer aos céus por ser menos miserável. Ora, que desgraceira é essa? Se milhões morrem na Etiópia eu devo ficar feliz por ter comida em minha mesa? Se o garoto-toco é um toquinho caucasiano, eu devo regozijar-me por ter, intactos, meus cambitos? Claro que não, lamento muito a ausência de pernas nos homens-toco do mundo. A miséria de qualquer um no mundo me diminui. Sei que não resolverei nunca os problemas do mundo, até porque a única coisa de que disponho é a minha literatura pobre, tosca, mas nem isso me dá o direito de achar que estou confortável porque tenho pernas e comidas, coisas que outros não têm. E quero deixar registrado que ninguem no mundo sabe a incompletude dos seus semelhantes. Somos todos, mesmo que organicamente íntegros, homens-tocos sobre a terra.
4. Ser feliz é, ainda, uma invenção do diabo para nos provocar a gula, a ambição, a guerra. Ser triste, por sua vez, é coisa de um Deus que nos quer temerosos do fim do mundo e passemos a encher igrejas para garantirmos a felicidade...no céu. Nao quero ofender a crença de ninguem, meus amigos, apenas quero pacificamente expor minha descrença. No fundo, lá no fundinho, eu bem que gostaria de crer como vocês crêem, pois assim a vida seria muito mais suportável. Mas, como Drummond, creio que nasci gauche.
5. Na paz!

Comentários acerca de Salieri

Somos medíocres, leitor meu, meu irmão. Essa é nossa medida e natureza: mediocridade. Do dedão do pé ao último neurônio somos, doa a quem doer, medíocres com fumos de genialidade. Somos do reino da vulgaridade, da banalidade, somos zero. Gente envernizada, raspando-se nada sobra, apenas um tutano careado e ignorante, um mulambo espetacularizado.
É duro ler tal afirmação, mas é necessário fazê-la, é fundamental ser espelho: somos medíocres desde a raiz ancestral africana. Lucy, a pós-símia e pré-humana, aquele resto de osso e substância orgânica, já era medíocre e vã em sua savana arcaica. Vem de longe o tatear da vulgaridade em nossa espécie, e no entanto eis que cultivamos estátuas de heróis inatingíveis, bustos de geniais compositores, representações de titãs incomensuráveis, pegadas de fantasmas de películas. Somos mestres em cultuar as exceções, somos assim fazendeiros da raridade.
A cultura nos cobra a genialidade que, por padrão, ocorrência histórica e estatística, não temos, nem teremos. Devemos aceitar essa realidade: somos medíocres, não por necessidade ou opção - que não somos tão estúpidos assim - mas por predisposição genética. Nossa natureza é a mediocridade. Hão de um dia descobrir o gene dessa nossa bagaceira metafísica, tenho fé.
A propósito da ideologia embutida em “Amadeus” (assista a peça, leia o livro e veja o filme), é-me doloroso, porém divertido, dizer que estamos mais para Salieri que para Mozart. Refiro-me aqui aos personagens, fantasmas fictícios, e não às figuras históricas que respiraram um dia sobre a face desta terra. Óbvio ululante? Nem tanto, considerando que nos esforçamos sempre em ser Mozart , e nesse esforço vão tentamos matar o Salieri que todos temos. É a nota 10 que se cobra do filho na escola; o primeiro lugar no concurso para violino; o destaque do ano na indústria de velas; o Nobel da paz; o Jabuti de poesia; a cadeira de imortal; o Pulitzer; o Oscar; o pódium; a pole position, o funcionário do mês no MacDonalds... Todos os joões-ninguém queremos ser o Airton Sena e o Pablo Picasso que nunca seremos. Isso não nos torna pior ou melhor, pelo contrário, nos iguala a todos, resgata nossa verdadeira natureza: o banal, o vulgar, o trivial. Somos feijão com arroz e assim morreremos todos, sem nunca termos sido caviar. Fatalismo? Nada, meus vermes leitores, apenas pura constatação histórica. Somos todos salieris pomposos, orgulhosos, senhores de porra nenhuma, pajeando a aberração, a mutação, a transcendência inerente ao gênio. A genialidade como paradigma de nosso trajeto pela vida é a forma mais cruel de tortura. O gênio será sempre a odiada e invejada exceção. Este sim, excrescência, fruto máximo do sarcasmo divino. Brincadeira trágica que os deuses tecem sobre nossas expectativas rasteiras e comezinhas.
Somos nada e nos cobramos tudo, só podemos esperar conflito, neurose, amargor, angústia. O ser humano vale pelos sentimentos que desperta, provoca, sente. Somos raiva, ciúme, inveja, ódio, mesquinhez. Mesmo quando Mozarts, Bachs ou Camões, somos rasteiros e ofídicos. Somos um pouco Salieri, Otelo, Ahab, a madrasta dos contos de fada, Sísifo, Lafcadio. A exceção sempre são os outros. Os poucos outros. Essa frase tem seu sentido mais profundo para a grande maioria dos bípedes desse planetinha sujo. Sempre em linha reta.
Não estou aqui para questionar a obra de Antonio Salieri, não vem ao caso. Nem falo aqui do Salieri real, torno a declarar. Estou comentando a trágica personagem que sucumbe ante o gênio irresponsável e sifilítico da outra grande personagem, Mozart. Esta, o exemplo do que foge à regra. Porque não deixá-la à míngua? Porque não cultuarmos o ze-povinho? O jeca? O que realmente nos representa? Porque não? Não há que se tomar partido. Não se trata de uma disputa Brasil e Argentina. O que está em jogo é a supervalorização daquilo que em nossa trajetória pelo cosmo sempre foi e será exceção: o herói, o gênio, o super-homem. E por ser exceção, que tal abandoná-los e passarmos a nos guiar pela regra?
A regra somos nós e nossas dívidas, nossos carnês de prestação, nossas falcatruas rotineiras, nossas vidazinhas ordeiras e pacatas, nossos domingos infaustos repletos de faustões. A regra é o pai bondoso e cristão, cumpridor de suas obrigações para com a Igreja, o Estado e a Família. Essa é nossa regra, sermos medíocres integrais: bíblia embaixo do braço, código do consumidor à cabeceira da cama, o autor mais vendido citado de cor, o compositor mais meloso assobiado no churrasco de domingo. Esse indivíduo somos nós. Vocês acham que somos aquele que escreve obras-primas? Compõe sinfonias? Ganha batalhas gigantescas? Descobre a cura do câncer? Não se iludam, voltem ao seu joguinho de gamão ou à sua coleção de chaveiros, é melhor contentar-se com o esquecimento.
Somos nós que linchamos assaltantes de ônibus, violamos crianças, assistimos novelas e falamos da vizinha que trai o marido. Sim, esse medíocre indivíduo que aposta na loteria, palita os dentes no meio da rua, coça o saco e cospe de lado ao xingar homossexuais e mulheres independentes somos nós, eu e você. Aquela outra que rói o esmalte carmim e tenciona abortar o feto que carrega, sou eu e é você também. De alguma irônica e trágica maneira, somos a massa sem rosto que transita nas grandes cidades do mundo. Esse sim é nosso destino e nossa cara: uma raça de pequenos homens, com grandes e minúsculos sentimentos que nos fazem marcar a ferro e fogo nossa presença sobre a superfície do planeta.
Grandes são nossos sonhos, isso sim é real. O resto é mídia, purpurina, folhetim barato distribuído gratuitamente como encarte nos jornais de bairro.

A segunda senha

Toda revolução exige coragem. Coragem é, quase sempre, o outro nome para loucura. Mudar o que está posto, se o que está posto não satisfaz, é obrigação de qualquer animal político. O bicho homem carece de coragem para mudar-se, e me refiro a uma revolução muito mais profunda: a do ser. Não há revolução coletiva sem mudança individual, este é o único mandamento da história. As pessoas seguem suas vidas como quem tece um tapete sem graça, já escreveu um poeta desconhecido. Dia a dia, artesãos dessa peça desbotada e comezinha, vão amarrando cada ponta, da mesma maneira, desde sempre. Espécie de Penélope sem heroísmo algum, o que se observa é que em grande parte das histórias, esse artesão apenas continua o artesanato do pai, que já o trouxe do avô e que, por sua vez, aproveitou do bisavô. Romper essa cadeia exige coragem, pois é um ato revolucionário. Imagino que em todo inconsciente marcha um pequeno exército vigilante, violento, mantendo sob suas botas os mais puros e sinceros desejos de mudança. É a mulher de olhar triste que atravessa cinqüenta anos de um casamento sem carinho e sem orgasmo. O trabalhador que alimenta sua gastrite ao bater o mesmo ponto, sob o mesmo salário de fome, durante anos e anos e anos. É o sonho empurrado para baixo do tapete, o desejo recolhido no armário, as vontades amordaçadas no fundo das gavetas, as necessidades mal satisfeitas, os prazeres raros e negados, a comidinha parca, o sexo miserável, o dia-a-dia mais rasteiro e dolorido, como aquele esmalte descascando marçalaquinamente no dedo da puta velha... é preciso coragem para empreender uma revolução pessoal, ou, também dizendo em bom português, é necessária a loucura. Sim, porque é normal ouvir-se dizer de alguém que abraçou o mundo, abandonando casa e família em busca da felicidade, é louco, doida varrida. Aquele que largou um emprego bem remunerado e, feliz da vida, mudou-se para um pequena cidade no interior do país pensando em cultivar orgânicos ou maconha medicinal: Louco de pedra. Ou ainda aquela outra que, prestes a formar-se em Medicina, percebeu que seu destino era militar no jornalismo cultural e investiu num site, num jornal, num blog: Insana. O que dizer então daquela que, a poucos dias do casamento com promissor partido, resolve fugir com um grande amor? Doida, maluca. E eu me lembro daqueles jovens de classe média, bem alimentados, bons cursos, boas universidades, que adentraram o mundo violento da clandestinidade na utopia de empreender uma revolução no Brasil. Que palavra os define? Loucos. E aquele palestino que ousou falar de amor para romanos e judeus? Louco. Sem a coragem não há loucura e nunca haverá revolução alguma. Seremos todos um bando de infelizes, empurrando um carro pesado, cheio de sonhos calcificados, tornados pedras, numa estrada esburacada. Do nosso caminho, enxergaremos toda a possível delícia no horizonte, mas não teremos um pingo da loucura necessária para alcançá-la. Simples assim, triste assim.

O mal-estar

Aprendi a ser formal e cortês, canta o poeta argentino. Me ensinaram a falar baixo, a não alterar o tom de voz, a dizer calmamente “Senhor” ou “Senhora”. Como bom e dócil aluno que sempre fui, aprendi a ser alguém que não me conheço, mas que pelo menos vive muito bem nas instâncias do real, do social. Corto o cabelo uma vez por mês, não cuspo na rua, não mijo na tampa do vaso. Como vêem, eu realmente fui um ótimo aluno na escola da cultura: aprendi a viver em sociedade. Hoje eu me pergunto a que custo e sei que um outro em mim anda adormecido, acorrentado, mantido quieto como uma sujeira que se varre para debaixo do tapete. Esse outro, que também sou eu, tornou-se uma espécie de ameaça ao mundinho baseado em Senhor e Senhora, ao não cuspir ou arrotar, à obediência passiva. Daqui eu o vejo, olhar cansado de tanto peso nas costas, dentes a mostra querendo roer meus tendões. Ainda ontem senti que bicavam seu fígado, como um titã condenado numa ilha qualquer em mim. Quem sangra um sangue invisível, mas não menos dolorido, sou eu, este que freqüentou os bancos da igreja, da escola, do partido, do sindicato, da caserna, da vida real. Esse momento é só meu e eu pressinto uma necessidade urgente de que tudo se vá numa magnífica explosão zabrieskiepointeana, arremessando entulhos para todos os lados, tingindo de partes podres de mim os muros dessa vidazinha levada na flauta de Pã. Mas isso também é uma forma de aprendizagem, ou não? Hoje eu sei que aprendi a ser aquele que um dia vai libertar-se de todo aprendizado e ser feliz.

O aborto de Dida

Dida chegou de madrugada, num ônibus que, atrasado, fez o trajeto João Pessoa/Brasília, em 36 horas. Chegou assustada em minha casa, no Guará 2, nunca tinha arredado pé da Paraíba e por isso mesmo estava deslumbrada com a capital do país. Era baixinha e de cara engraçada. Atarracada e falante, apresentou-se com facilidade e, a primeira vista, nos convenceu de que seria capaz da trabalhar como doméstica em nossa casa. O tempo provou que era tudo apenas uma possibilidade que não se cumpriu, pois Dida não tinha traquejo algum para as tarefas do lar. Cozinhava muito mal, faxinava pior ainda. Era uma perda de tempo insistir com sua mão de obra. Para complicar a história, no primeiro mês de trabalho, revelou-se grávida de alguns meses. Nessa época, trabalhávamos muito, eu a minha esposa, e em casa, a minha finada sogra sobre sua cadeira de rodas nos auxiliava na administração das coisas do lar com a ajuda de uma paraibana prenha e ruim de serviço. Um belo dia, atendo o telefone no trabalho. Era minha sogra desesperada tentando me convencer que Dida estava abortando a criança. Estava presa no banheiro ha horas, sangrando, ela me dizia. Ora, o que realmente acontecia, descobriu-se depois, é que Dida, na tentativa desesperada de evacuar, acabou com um enorme tronco de fezes ressequidas no meio do caminho, ou seja, metade da “tora” ficou do lado de fora do anel que impedira a passagem do resto. Sabe-se lá que tamanho teria o “semelhante” resto. Ao forçar a saída do míssil, gemendo em dores, sangrou e manchou o vaso de louça branca. Minha sogra interpretou como aborto aquela situação esdrúxula de um “toletão” engasgado num toba nordestino. Ela, mulher fina que era, impossibilitada pela própria deficiência de acudir a pobre Dida, que começou a chorar de dor, sugeriu que a coitada fizesse uma massagem em torno do ânus mas Dida não sabia o que era ânus, no que foi bem esclarecida em bom português. Após manipular as partes próximas ao cu, o cagalhão sentiu-se afrouxar o caminho e começou a deslizar, para alívio de Dida, e mergulhar na privada. O aborto inicial deu lugar a uma criança enorme, marrom, que encheu o vaso de mau cheiro. A expressão de alívio de Dida tinha mais a ver com a evacuação daquele poste do que propriamente a inexistência de um aborto real. Coisas da vida.

sexta-feira, fevereiro 24, 2012

Rosicleide no Rio (uma história quase real)

Rosicleide Wanessa é funcionária do Ministério da Fazenda, em Brasília. Moçoila vibrante em seus trinta aninhos bem vitaminados, adora Carnaval e, por conta dessa paixão, não dispensa uma folia, onde quer que seja. “Ah, gente – ela costuma dizer – por Carnaval vou até no Inferno”. Mas é pura retórica, Rosicleide é, no fundo, uma boa moça. Há dois anos, empreendeu uma aventura no Galo da Madrugada, que lhe valeu algumas pedras nos rins (por não conseguir urinar nos banheiros públicos) e um tornozelo torcido, por conta de um mau passo de frevo e uma pisadela de um negro forte fantasiado de mulata. Conta-se à boca pequena que, nesse carnaval pernambucano, Rosicleide passou muito mal devido ao calor e ao aperto na bexiga. Sua tentativa de esvaziá-la nos banheiros químicos instalados no percurso do Galo, mostrou-se vã e, pior, problemática. “Gente – ela conta ingenuamente - havia bosta espalhada em todos os banheiros que eu fui. E não era bosta sólida não, menino – ela dizia envergonhada – era bosta líquida, pastosa, explodida na parede do vaso como bala de paint ball. Sabe aquela que sai em jato? Pareciah pintura abstrata. Horrível. Tentei usar, mas não deu mesmo.” Pobre Rosicleide Wanessa! Mas ela não desiste de seu sonho de passista, não. Este ano se preparou toda para o Carnaval do Rio de Janeiro. Descolou com uma amiga de uma amiga, que era casada com um o cunhado do primo da tia de sua futura vizinha em Águas Claras, uma vaguinha num conjugado em Copacabana. “Ah, gente, eu não consegui hotel, os que tinham vaga eram muito caros. Estava quase desistindo de ir.” Feliz da vida com a certeza de estar na cidade maravilhosa durante o Carnaval, comprou fantasia, adereços, passagens, cremes (o sol no Rio é de lascar, ela dizia), e partiu de mala e momo para o Santos Dumont. Primeira decepção: o tal conjugado devia ter 3m X 3m, contando o banheiro. Ficava num edifício muito velho e muito barulhento. Hospedadas na pequena quitinete, além, é claro, da amiga da amiga, que era casada com um o cunhado do primo da tia de sua futura vizinha em Águas Claras, outras 7 pessoas. Duas delas vieram de Marabá para desfilar na Porto da Pedra com a fantasia de lactobacilos no grande enredo sobre a história do iogurte. Outras três eram integrantes de uma igreja pentecostal que tencionava converter foliões às graças divinas, livrando-os do pecado. Rosicleide, é claro, tornou-se um alvo em potencial. A estas figuras, um homem que se dizia pastor, mas que tinha todo o jeito de tarado, e duas mulheres muito carolas, Rosicleide já foi logo demarcando território “Meu Deus é momo, o resto é do capeta. Vade retro, seu pastor”. Não foi mais incomodada pelo trio, embora tenha a nítida impressão de ter ouvido uma das mulheres amaldiçoá-la. As outras pessoas eram conhecidas de Rosicleide e com elas combinou de se unirem aos blocos pela cidade. Dormiram pelo chão, colados uns nos outros, e a mão do tal pastor passeando, boba, pelo quarto. “Ainda bem que não estava fazendo 40 graus – contou-nos Rosicleide – mas apenas 36. Deu pra dormir legal, apesar do suor correndo no pescoço. Dei muito tapa na mão do pastor.” No dia seguinte, muito excitada, fantasiou-se de Minie. Isso mesmo, Rosicleide Wanessa, aquela moçoila do Ministério da Faznda, alegre e vitaminada, tornara-se uma rata do Disney. Nem tomou café, tão ansiosa estava para seu primeiro evento momesco, abriu a porta e saiu animada. Primeiro impacto: a lembrança do banheiro de Recife. Um cheiro terrível de fezes pelo corredor do edifício. Rosicleide tapou o nariz e atravessou o corredor com ânsia de vômito. O pior vinha a seguir, no elevador. Duas “tuias” de uma substância que, pelo cheiro, só podia ser merda, estavam repousando no tapete do elevador. Rosicleide, a ratinha Minie, não se conteve e, batendo na porta, apertou a emergência, e foi resgatada pelo porteiro. “Cagaram nessa porra!” Ela gritou ao pobre funcionário que percebeu que um trabalhinho nada agradável lhe aguardava. “Onde já se viu isso, meu senhor? – continuava Rosicleide muito exaltada – Em que lugar do mundo alguém entra num elevador e deixa dois quilos de merda, hein?” . Seguiu pela escada, batendo pé no chão, com o cheiro de bosta impregnado na roupa, no nariz e no lacinho vermelho com bolinhas brancas que ela comprara num camelô na Prado Junior. Ia para Ipanema, para o desfile da Banda de Ipanema. Marcara com umas amigas do Ministério, a Maria das Graças e a Jussara Mariana, também vestidas de ratinhas da Disney. O tempo passando na velocidade de uma marchinha de carnaval. Como não conseguia pegar nenhum dos ônibus lotados que passavam na Barata Ribeiro em direção a Ipanema, criou coragem e entrou na primeira van, também lotada, e, em pé, curvada (pois o teto não lhe permitia ficar ereta), foi para o bloco, com a bunda na cara de uma rapaziada fantasiada, ouvindo uns bêbados cantarem pertinho de seu ouvido “Delícia, delícia, assim você me mata...ai se eu te pego”. Como era Carnaval, Rosicleide Wanessa não deu bola para a galera que, berrando em seu ouvido, insistia em dizer que ela era a nora que “mamãe sonhou”, “A empada da minha azeitona”, “a cerejinha da minha tortinha, gata”. Suada, descabelada, irritada, lacinho vermelho fora do lugar, Rosicleide se espremia na multidão buscando Maria das Graças e Jussara Mariana. Encontrou-as já animadinhas, bebendo caipirinha e cerveja e vodka e tudo mais que se lhes oferecessem. Tudo muito animado, muito cheio, muito quente. Carnaval é carnaval, ela pensava. Aquela vontade de deitar uma aguinha do joelho foi chegando, chegando, primeiro devagar, suportável, depois...ah, depois é só aquele desespero: quero mijar, mijar, mijar. A lembrança dos banheiros de Recife e das balas de paint ball ainda pairando em sua cabecinha de rata. Ainda assim, seguiu com as amigas para a fila dos banheiros químicos. “Não estou mentindo, gente – ela contou mais tarde – mas a fila dava voltas na Praça General Osório e minha bexiga não agüentava mais.” Procuraram desesperadamente um lugarzinho discreto para um agachadinha básica. Como achar um lugar discreto em Ipanema, com 100 mil pessoas se espremendo e cantando “Delicia, delicia, assim você me mata” ? Mas Rosicleide Wanessa não desiste tão facilmente e, de longe, enxergou uma árvore entre dois carros que estavam mal estacionados. Fez os cálculos “Duas ficam na frente, outra atrás, a terceira se abaixa perto da árvore...é isso, meninas, vamos.” E foram. Primeiro Jussara Mariana, depois Maria das Graças, depois fulaninha dos anzóis. Uma após outra foram se aliviando. “Anda gente, que porra de enrolação é essa? – berrava Rosicleide – eu to quase estourando”. Finalmente, antecipando o prazer da mijada, Rosicleide Wanessa Guedes Penteado Silva e Souza foi arriando a calcinha (também vermelha com bolinhas brancas – pra combinar com o lacinho). Em sua cabecinha, parecia cena de cinema, em camera lenta. Viu-se até balançar a cabeça, os cabelos surfando o ar, lentamente, ela arriando a calcinha, o vento fresco chegando por baixo, ahhh, como é bom mijar...ela já antecipava tudo. Foi quando um enxame de abelhas muito agressivas cobriu seu rosto e seus braços. A mulherada se dispersou como cavalos assustados. Era gente pra todo lado e as abelhas num bloco todo seu de carnaval e ferroadas. Rosicleide, coitada, com a calcinha nos joelhos, corria como um papagaio, tropeçando no meio fio, empurrando daqui, dali, gritando, pedindo ajuda “Socorro gente, socorro gente, ai, ai, ai” E o bêbado mais próximo, emendando, “Ai, ai, ai, assim vc me mata”. No desespero de livrar-se das abelhas, Rosicleide Wanessa perdeu os dois brincos (Ah, gente, eu adorava tanto aqueles brincos – ela nos contou depois), anéis, pulseiras, um sapato e calcinha vermelha com bolinhas, que ela teve que deixar pelo caminho, para escapar dos ferrões. Ainda bem que nem ouviu quando um garotão, tipicamente carioca, comentou com um amigo ao ver a cena do desespero da pobre Rosicleide: “Ih, maluco, uma abelha rainha correndo das escravas” e o outro respondendo “Colé, mane, é uma Minie procurando o Mickey”. Na farmácia tomou anti-alérgicos, analgésicos, cremes anti-inflamatórios, etc. A ratinha Minie chegou no apartamento com metade do rosto (a face direita) ainda muito inchada. Ambos os braços também inchados e, pior que tudo isso, o orgulho ferido e a vontade de encher de porrada uma das pentecostais que, ao vê-la nesse estado lastimável, sussurrou “Jesus castiga, Jesus não falha, eu avisei”. Contentou-se em xingar baixinho “Ah, tenha dó, copule-se, dona” Fim de carnaval? Que nada! No dia seguinte, já recuperada do susto, Rosicleide Wanessa, vestiu-se de Pedrita, aquela personagem que namora o Bambam, dos Flinstones, e saiu para a Praça XV, em busca de um homem das cavernas que a fizesse esquecer as abelhas.