segunda-feira, fevereiro 24, 2020

A peste branca


A peste apareceu em minha vida na forma de uma notícia assustadora, com sabor de ficção, irreal, forjado, artificial; veio como uma peça, uma traquinagem, uma mentirinha, uma brincadeira de mau gosto; surgiu, enquanto almoçávamos,  na expressão de seriedade ensaiada da apresentadora de um telejornal, com jeito de coisa escandalosa, recheada de sensacionalismo barato, como um bizarro ingrediente entre receitas culinárias, notícias da crise financeira mundial e os gols da rodada do campeonato brasileiro de futebol, enfim, apenas uma notícia a mais na pauta daquele dia. Depois veio estampada em revistas, em manchetes de tablóides - ambrosia para o apetite voraz da imprensa marrom - sempre num tom apocalíptico, coisa que, por estarmos bastante acostumados à histeria típica dos profissionais da comunicação de massa, não nos fazia levá-la muito a sério, apenas um modismo, disse meu pai tragando o seu cigarro; em pouco tempo, julgávamos nós, incautos, encontrariam uma catástrofe mais interessante para povoar nosso imaginário do fim dos tempos. Mas a coisa mostrou-se não ser bem assim, e isso ficou claro quando, depois de uma alardeada visita de médicos e pesquisadores americanos e europeus à região de Mosoto, no interior do Zaire, foi detonado um artefato nuclear naquele país, eliminando, em fração de segundos, toda uma população de portadores e não portadores da tal peste, riscando inapelavelmente do mapa, cidades, vilas e povoados daquele país africano, que ousara abrigar o nascimento da doença.  Pouco tempo antes dessa tragédia, alguns casos isolados começaram a pipocar na França, na Alemanha e nos Estados Unidos. As autoridades sanitárias desses países tranqüilizavam suas populações afirmando que a epidemia era um fenômeno isolado e que já estava em curso um grande plano de contenção da peste. Por meio desse plano, que os jornais divulgavam em tom de descrença, foram adotadas medidas drásticas que, por sua natureza, revelavam a situação crítica que os políticos tentavam camuflar a todo custo; assim, respaldados no terror da coisa desconhecida e poderosa, fecharam aeroportos, bloquearam a entrada de qualquer indivíduo ou produto proveniente das regiões-foco, enviaram forças militares para, inutilmente, empreenderem um cerco a países africanos que apresentavam sinais mais graves da epidemia; votaram verbas extraordinárias para pesquisas e para a construção de misteriosos abrigos de concreto que, mais tarde, pela televisão, viriam mostrar-se de uma utilidade no mínimo macabra. O que não sabíamos, embora desconfiássemos, como avestruzes diante do perigo iminente, é que a peste estava fora de qualquer controle e que, até àquele momento, não havia solução alguma que pudesse contornar o sacrifício de toda uma nação, como acabou acontecendo com o Zaire. A comoção internacional, naquela hora, só não era maior que o imenso terror que tomou conta de todos. Acompanhávamos as notícias ansiosamente, buscando uma luz para aquilo que parecia ser o maior dos pesadelos: finalmente a natureza conseguira forças suficientes para nos expurgar da face da terra. Lá no fundo de cada um de nós batia aquela esperança de que tudo não passasse de um angustiante pesadelo, que de repente todos acordaríamos e respiraríamos aliviados. Ledo engano. Os ecologistas avançavam suas críticas sobre o progresso tecnológico descontrolado e amoral, acusavam as pesquisas genéticas de serem a causa do surgimento da doença. Até então o que se sabia era que o vírus era incomparavelmente mais destrutivo e mutante que qualquer outro já registrado. A peste manifestava-se de maneira traiçoeira, pelo ar, pela água que bebíamos, pelo toque, pela secreção, pela saliva, pela picada de um inseto contaminado, pela ingestão de carnes ou vegetais que de alguma maneira tivessem mantido qualquer contato com o vírus - batizado apropriadamente por cientistas indianos que o isolaram como HArmagedomV. A vítima manifestava inicialmente os sintomas de um simples resfriado que, em menos de 36 horas, após infestar os pulmões, obstruía os brônquios, impedindo a respiração, matando-a, após dolorosa agonia, por asfixia radical. Tudo limpo, sem manchas, marcas, caroços, tumores, suores ou sangramentos. Uma peste branca, como acabou conhecida. O pior de tudo era a constatação de que o vírus não mantinha um padrão de incubação. Não se tinha ideia de quando ele dispararia a tragédia, semanas, meses, anos? Isso era o pesadelo de todo cientista. Impossível prever quem estava contaminado a tempo de impedir sua propagação. Mas a solução final adotada pelos americanos no caso do Zaire, mostrou-se ineficaz. O vírus já se fazia notar em outros cantos do planeta e era impossível conter seu avanço. Obviamente não iriam explodir todos os continentes. Os casos se multiplicavam em progressão geométrica, sem controle, sem esperança. Sabíamos que nos grandes laboratórios de pesquisa travava-se uma luta desenfreada contra o relógio que, inexoravelmente, parecia apontar o extermínio da raça humana. E era essa a terrível expectativa que tínhamos, o fim de nossa espécie. A peste selecionara a vítima ideal de sua carnificina: o homem. Nenhum outro ser vivo do planeta era atacado por ela. O enigma maior estava justamente em identificar o que nos tornava objetos exclusivos do desejo letal do vírus. Lembro-me de meu pequeno irmão traçando sua teoria, dizendo-nos que talvez o “bichinho” - como gostava de chamar o HArmagedomV - gostasse apenas de bichos que pensassem. Enquanto meu pai e meus dois outros irmãos riam dessa estapafúrdia teoria, eu mastigava-a como uma hipótese viável. Porque não? Não poderia ter sido justamente nossa razão e nossa ganância a causadora disso tudo? Quem me garantia que esse vírus não fosse fruto realmente de nossa intervenção na natureza, através da poluição, das pesquisas genéticas, das armas químicas, bacteriológicas, do lixo atômico, dos testes nucleares? Quem? Nenhuma região do mundo estava imune à peste branca, os casos surgiam aos milhões, da Nova Zelândia à Portugal, do Uruguai à Groenlândia, do Hawai à Paraíba, indiferente à cor, raça, credo, sexo, idade, ideologia; nos grandes centros urbanos como Nova York, São Paulo, cidade do México, Rio, Buenos Aires, Londres, Teresina, as pessoas estavam morrendo como moscas; tentavam fugir inutilmente para o interior do seu país, onde a peste já havia se instalado e ceifava vidas do mesmo modo. Finalmente éramos uma macabra aldeia global. Nos países mais pobres a situação era caótica, famílias inteiras dizimadas, gerações que sucumbiam à fome da peste, corpos incinerados aos milhares em praça pública, choro, desespero, dor. O quadro repetia-se nas nações ricas, a diferença estava na forma de eliminação dos cadáveres contaminados. Em tempo recorde, construíram enormes sepulcros de concreto onde, coletivamente, eram lacrados os corpos das vítimas. No geral, a paisagem de dor e desespero repetia-se em Paris ou Bogotá, a fragilidade humana era a mesma diante do inevitável. Quando o Papa sucumbiu à peste, uma das últimas notícias internacionais que nos chegaram naquela época, a impressão que tínhamos era a de que não haveria mais milagre, que tudo estava irremediavelmente perdido, que era chegada a hora do apocalipse. Estava formado o terreno fértil de onde brotaria, com vigor medieval, o fanatismo e sua legião de profetas. Era o fim do mundo, o juízo final, gritavam nos quatro cantos do mundo. É o castigo pelos nossos pecados, nós o merecemos, tentavam nos convencer. E convenciam os ingênuos, os desesperados. Multidões reuniam-se para cantar, rezar, chorar seus mortos, clamar a Deus por suas vidas, esperando o fim iminente. E nessas multidões a peste encontrava o ambiente perfeito para exercer seu ofício, disseminando-se como reação em cadeia, propagando-se como o rompimento de uma barragem, uma bomba nuclear orgânica de efeito devastador. Quando os primeiros casos aconteceram em nossa rua, meu pai, desesperado, arrancou-nos da cama, de madrugada, e nos levou para um terreno de chácara, a alguns quilômetros da cidade. Nesse lugar, que dificilmente visitávamos, ele mantinha uma pequena e variada plantação, que era muito bem cuidada por Clementino. Sua intenção era retardar o máximo possível qualquer baixa em nosso pequeno exército, eu, ele e meus três irmãos, isolando-nos do resto do mundo. Por isso partimos na calada da noite, lenços brancos enrolados no rosto, como bandidos de filmes de cowboy, em silêncio, o coração batendo forte. Eu sabia que estávamos nos despedindo de nossa casa, nossa rua, nossa cidade, enfim, de nossas vidas. A rua escura abrigava, em algum lugar, o famigerado predador invisível. Meu pequeno irmão, que não apreendera ainda a dimensão de tudo aquilo que se passava ao seu redor, brincava de bang bang, matando com seus tiros de mentira os raros transeuntes daquela madrugada.  Minha mãe, costumava dizer meu pai, tinha tido a sorte de, falecendo no parto de meu pequeno Durango Kid, não presenciar o fim de tudo. Qualquer espirro, tosse, era motivo para que ele se alarmasse, isolasse o sintomático do resto do grupo e observasse atentamente, numa aflição gritante, o desenrolar daquele espirro, daquela tosse. E não é o caso de se falar aqui em paranóia, era necessário agir assim, a peste branca não mandava aviso, não escolhia hora, vítima ou lugar. Simplesmente desabrochava, uma flor tétrica, após um espirro, e tudo virava pavor no lar amaldiçoado com seu perfume. O caos foi crescendo lentamente; com a morte de milhões de pessoas, as atividades diárias foram simplesmente desaparecendo, não havia quem operasse as usinas, as fábricas, os trens, as câmeras de televisão; não havia quem ministrasse cultos, aulas, missas, velórios; não existiam mais aqueles que vendessem ou comprassem, que obedecessem ou mandassem, que elegessem ou roubassem; não havia mais quem enterrasse os mortos, quem lhes fornecesse a extrema-unção, quem cuidasse dos doentes, dos jardins, dos parques, dos animais no zoológico, quem fizesse sexo, quem fizesse partos; em pouco tempo, dizia meu pai, à luz de velas, não haverá ninguém para morrer, a peste terá terminado seu trabalho, comerá a si própria. Não tínhamos notícias dos parentes, dos amigos, vizinhos. Na certa estavam mortos e apesar de toda a dor que sentíamos, ninguém, em sã consciência, se arriscaria a voltar à cidade para confirmar a terrível suspeita. Estávamos todos juntos, plantando o que comíamos; bebendo, após fervida, a água de um poço artesiano, sem notícias do mundo, sem luz, sem gás, sem remédios, sem esperança alguma, apenas sobrevivendo, e eu me perguntava: Para quê? E meu pai dizia: apenas porque estamos vivos, por isso insistimos. As pouquíssimas pessoas que apareceram por estas bandas foram expulsas por meu pai e seu revólver. Lembro com tristeza a figura de uma mulher, o marido doente e seu filho, implorando ajuda, pedindo comida, e a voz dura do meu pai, à uma distância que julgava segura, ameaçando-os. Tentei argumentar em favor deles e em troca recebi um dolorido cascudo na testa. Vi quando a mulher sumiu na estrada de terra, arrastando o pequeno pela mão, o marido apoiando-se em seu ombro, tossindo, tossindo. Havia três meses que estávamos aqui, quando a monotonia foi quebrada pela febre repentina de meu irmão mais novo. Ela chegou sem tosse, sem espirro, mostrando-se orgulhosa no bastão de mercúrio que meu pai retirara da axila do pequeno: 38 graus. Notei no meu pai o olhar de tristeza e pânico. Como de praxe nessas ocasiões, meu irmão foi isolado num quartinho no fundo da casa, onde, durante todo o dia, desdobramo-nos em cuidados, levando comida, água, tudo sem contato algum, por uma pequena abertura na porta. Meu irmão, o pequeno prisioneiro, chorava e tremia sua febre na solidão daquele quarto, e nós, logo ali, sem nada podermos fazer além de aguardar o previsível desfecho. Antes que a peste levasse meu irmão, caiu meu pai em desgraça; logo ele que, descumprindo as regras básicas de sobrevivência, por ele mesmo criadas, ousara abraçá-lo um dia, aos prantos. Depois caíram meus outros irmãos e Clementino. Um a um foram-se de minha vida, sem apelação, sem socorro, sem nada. Em menos de três dias, pateticamente, tornara-me o único ser vivo daquela casa. Já não chorava mais, não tinha mais sentimento, nem dor, nem saudade. Nada. Virara uma planta, uma coisa. Enterrei-os lado a lado, no fundo do terreno, embaixo de uma árvore, numa cova que meu pai, precavido como sempre, mandara abrir antes de ser abatido pelo HarmagedonV. Meses se passaram sobre minha solidão. Não sei se existe alguma alma viva neste mundo, mas escrevo este relato sem me importar se algum dia encontrará algum leitor. E não é assim a arte de qualquer escritor? O último pedaço de vela queima sobre a mesa, deixei portas e janelas abertas ao vento, que entrem os sussurros dos fantasmas, que apascentem as baratas;  uma dormência me invade lentamente. Há dois dias comecei a tossir um pouco, mas creio que não tive febre. Lembro-me de meu pai e digo para mim mesmo: escrevo por que vivo, simplesmente por isso, escrevo.