Nós, os sinceros mentirosos
Vamos
falar sobre a mentira, matéria básica de todo romancista. Sim, por princípio,
como já dizia Ariano Suassuna, o escritor é um mentiroso profissional. Numa
entrevista, referindo-se à sua atividade literária, o autor paraibano
justificou-se dizendo que, por ter uma vida muito regrada, careta, nada nele
indicaria a existência de um criador de mundos e histórias. Sem mentir, não
haveria seu universo diegético. O que, a priori, parece uma piada para alegrar
uma palestra chata, vem bem ao encontro do material e do mundo da ficção. O
próprio Fernando Pessoa, mentiroso-mor com suas várias personas, escreveu que o
poeta é um fingidor, que eu traduziria para "um mentiroso", que mente tão
completamente que chega a mentir que é dor, a dor que deveras sente. Como
escritor, sigo a máxima do Barão Vermelho, via Cazuza, e proclamo que mentiras
sinceras me interessam. Sim, meu ofício de escritor assume esse processo da
mentira como matéria prima para a construção de um universo inteiro de homens e
mulheres que, aparentemente (e muito falsamente), não têm nada a ver comigo,
com aqueles que me rodeiam, mas ao mesmo tempo, nenhum escritor parte do zero
absoluto, e sobra então aquele jeito dissimulado de ser, que nos compõe a todos
que se arvoram na feitura de romances. Dia desses, assistindo à série Sandman,
de Neil Gaiman, me deparei com a seguinte cena: um escritor mantém aprisionada
a musa Calíope, pois, atravessando uma fase de crise criativa, quer que ela o
inspire a escrever. Rogando para ser libertada, Calíope diz ao escritor que,
quando estiver livre, ele poderá pedir inspiração a ela. Ele, então, jura que
vai libertá-la se ela lhe der uma grande ideia para um grande texto. Ela lhe
diz então: Todo escritor é um mentiroso, não dá para acreditar. Mas quando falo
em mentira, estou falando em ficção, em teias construindo gentes, famílias,
homens e mulheres, criaturas que vivem no papel e na leitura. Tudo isso para falar de meu último romance, "Mandacarus" (Patuá, 2025), que é um grande mosaico familiar. Não é minha família, mas poderia
ser. E não só a minha, mas também a sua, a de todo nordestino, que partilhamos a mesma
cultura, mesmo universo simbólico, mesmas histórias, lendas, tradições. Escrevi "Mandacarus" a partir de lembranças e invenções/mentiras sinceras de gente que
conheci, com quem convivi, que ouvi falar, avós, tios, primos,
vizinhos...plurivocais do dia a adia. Apesar de, como personagens, serem
realmente construções muito especiais, que revelam a natureza polifônica de
todo e qualquer romance, meus mandacarus mantêm uma tênue ligação com a torre do
real. Há sempre uma corda presa a essa torre que, como canta Gilberto Gil, é só
balançar que a corda nos leva de volta, eu diria, ao umbigo. Quando fez 50
anos, o velho Graciliano fez um discurso no Jantar que lhe foi oferecido e
afirmou: “não sou Paulo Honório, não sou Luis da Silva, não sou Fabiano. Apenas
fiz o que pude para exibi-los, sem deformá-los, narrando, talvez com excessivos
pormenores, a desgraça irremediável que os açoita. É possível que eu tenha
semelhança com eles...” E tem, sim, total semelhança com eles, mas é claro que não é
eles, como não sou nenhum de meus personagens e como Fleubert, outro grande mentiroso, também nunca foi Madame Bovary embora também tenha sido nesse paradoxo fundamental da ficção literária. Quando escrevemos nossas histórias, fazemos um pacto com o leitor sem
rosto: fingimos que é verdade e ele finge que acredita. No consumo de nossas
mentiras, o leitor vive nossas vidas, outras vidas, outros mundos. Ao acreditar
em nossas mentiras, cumprindo sua parte do pacto, o leitor dá vida às criaturas
que povoam nossas histórias e essa é a grande verdade de tudo. Não há verdade,
não há fatos. Tudo são versões e nossos romances são a melhor das verdades e a melhor versão dos fatos.
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