quarta-feira, julho 16, 2025

Nós, os sinceros mentirosos



 

Vamos falar sobre a mentira, matéria básica de todo romancista. Sim, por princípio, como já dizia Ariano Suassuna, o escritor é um mentiroso profissional. Numa entrevista, referindo-se à sua atividade literária, o autor paraibano justificou-se dizendo que, por ter uma vida muito regrada, careta, nada nele indicaria a existência de um criador de mundos e histórias. Sem mentir, não haveria seu universo diegético. O que, a priori, parece uma piada para alegrar uma palestra chata, vem bem ao encontro do material e do mundo da ficção. O próprio Fernando Pessoa, mentiroso-mor com suas várias personas, escreveu que o poeta é um fingidor, que eu traduziria para "um mentiroso", que mente tão completamente que chega a mentir que é dor, a dor que deveras sente. Como escritor, sigo a máxima do Barão Vermelho, via Cazuza, e proclamo que mentiras sinceras me interessam. Sim, meu ofício de escritor assume esse processo da mentira como matéria prima para a construção de um universo inteiro de homens e mulheres que, aparentemente (e muito falsamente), não têm nada a ver comigo, com aqueles que me rodeiam, mas ao mesmo tempo, nenhum escritor parte do zero absoluto, e sobra então aquele jeito dissimulado de ser, que nos compõe a todos que se arvoram na feitura de romances. Dia desses, assistindo à série Sandman, de Neil Gaiman, me deparei com a seguinte cena: um escritor mantém aprisionada a musa Calíope, pois, atravessando uma fase de crise criativa, quer que ela o inspire a escrever. Rogando para ser libertada, Calíope diz ao escritor que, quando estiver livre, ele poderá pedir inspiração a ela. Ele, então, jura que vai libertá-la se ela lhe der uma grande ideia para um grande texto. Ela lhe diz então: Todo escritor é um mentiroso, não dá para acreditar. Mas quando falo em mentira, estou falando em ficção, em teias construindo gentes, famílias, homens e mulheres, criaturas que vivem no papel e na leitura.  Tudo isso para falar de meu último romance, "Mandacarus" (Patuá, 2025), que é um grande mosaico familiar. Não é minha família, mas poderia ser. E  não só a minha, mas também a sua, a de todo nordestino, que partilhamos a mesma cultura, mesmo universo simbólico, mesmas histórias, lendas, tradições. Escrevi "Mandacarus" a partir de lembranças e invenções/mentiras sinceras de gente que conheci, com quem convivi, que ouvi falar, avós, tios, primos, vizinhos...plurivocais do dia a adia. Apesar de, como personagens, serem realmente construções muito especiais, que revelam a natureza polifônica de todo e qualquer romance, meus mandacarus mantêm uma tênue ligação com a torre do real. Há sempre uma corda presa a essa torre que, como canta Gilberto Gil, é só balançar que a corda nos leva de volta, eu diria, ao umbigo. Quando fez 50 anos, o velho Graciliano fez um discurso no Jantar que lhe foi oferecido e afirmou: “não sou Paulo Honório, não sou Luis da Silva, não sou Fabiano. Apenas fiz o que pude para exibi-los, sem deformá-los, narrando, talvez com excessivos pormenores, a desgraça irremediável que os açoita. É possível que eu tenha semelhança com eles...” E tem, sim, total semelhança com eles, mas é claro que não é eles, como não sou nenhum de meus personagens e como Fleubert, outro grande mentiroso, também nunca foi Madame Bovary embora também tenha sido nesse paradoxo fundamental da ficção literária. Quando escrevemos nossas  histórias, fazemos um pacto com o leitor sem rosto: fingimos que é verdade e ele finge que acredita. No consumo de nossas mentiras, o leitor vive nossas vidas, outras vidas, outros mundos. Ao acreditar em nossas mentiras, cumprindo sua parte do pacto, o leitor dá vida às criaturas que povoam nossas histórias e essa é a grande verdade de tudo. Não há verdade, não há fatos. Tudo são versões e nossos romances são a melhor das verdades e a melhor versão dos fatos.

 

 


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