segunda-feira, junho 01, 2020

Cenas de Copacabana - As plantinhas tristes



Experimente ler a crônica ouvindo: https://www.youtube.com/watch?v=rpLdtuSTueQ


Estavam todos incrédulos. Um alvoroço na portaria, ambulância e polícia na rua estreita, atrapalhando o tráfego. Dona Maria Helena? A pergunta carregada de espanto. Do sétimo andar? E a mão cobrindo metade do rosto, impedindo que a surpresa se configurasse nos lábios afastados, a boca aberta. Seu Severino, o porteiro, ouviu um barulho forte na cobertura do bicicletário. Achou que fosse alguma molecagem de morador do prédio. Percebeu um buraco nas telhas de amianto e, no meio das bicicletas caídas numa bagunça enorme, logo percebeu um par de pernas e pés descalços, um corpo em posição insólita, uma poça enorme de sangue, o rosto enfiado no chão. Sim, Dona Maria Helena do sétimo andar, saltou para o mistério. Professora aposentada, tinha 64 anos, calada, muito discreta. Vivia com o pai, o senhor Delmiro, antigo funcionário da Casa da Moeda. Ele, portador do mal de Alzheimer, demandava muita atenção e cuidados da filha. Ela, cada vez mais silenciosa e deprimida, aproveitando-se de que o pai dormia, pulou do sétimo andar e desistiu de tudo. Os vizinhos não sabem que atitude tomar. Não se conhecem outros parentes. Dizem haver uns sobrinhos em Campos, mas não se tem notícia deles e nem sabem como contatá-los. Pobre seu Delmiro. Ainda bem que a doença lhe poupou dessa tristeza profunda. Para ele, pouco importa o que se lhe sobre da vida. Como Dona Maria Helena, em meu prédio, outros suicidas florescem pelas janelas de Copacabana. São mesmo uma espécie triste de flores, plantinhas negras e murchas que optam por não perfumar o tempo e florescem encharcadas de sangue no asfalto. Escolhem maneiras diferentes de partida. Ana C. voou para o asfalto da Toneleiros. Alguns abrem o gás, como Torquato Neto, em Botafogo. Outros ingerem venenos, como Aline, dezesseis aninhos, da Paula Freitas que, após uma briga com o namoradinho de escola, resolveu castigá-lo matando-se. Sob o sol e o ar salitroso e saudável de Copacabana há muita escuridão e desespero. Há muita solidão berrando nos apartamentos mais plácidos da Siqueira Campos, da Santa Clara, da Domingos Ferreira. Muito abandono, muito desencanto. Não pense que tudo são corpos belos e perfeitos, festas e caipirinhas na praia, baladas e chope gelado no Leme, pois não são. Sob a luz do dia, ocultam-se muitas sombras e figuras desesperançadas. Há aqueles que se jogam do décimo segundo andar do Edifício Presidente, na Prado Júnior, movidos pelo consumo exagerado de drogas, estes não são suicidas exemplares, embora, tecnicamente, sejam suicidas que adiantaram o relógio. Lembro-me do caso desse rapaz, vinte e um anos e muita loucura, que se jogou de um Edifício em Nossa Senhora de Copacabana. Soube-se depois que passara o dia consumindo muita cocaína e às 3 da madrugada, paranóico, resolveu voar sobre a Avenida. No dia seguinte, uma poça de sangue e um dente perto do meio-fio atestavam o fracasso do vôo. Ìcaro sem mito. Há o caso da mulher que, saltando do quinto andar de um edifício na altura do Posto 6, caiu sobre uma mãe que empurrava um carrinho de bebê. Matou-se matando. O bebê escapou ileso e órfão de mãe. Vejam essa notícia que li recentemente: “O Ten-Cel BM Alex Vander, comandante do 17º Grupamento de Bombeiros Militar (Copacabana) manifestou recente em reunião do Conselho comunitário de Segurança de Copacabana e Leme realizada em 21/05/2013, a sua preocupação com o grande número de suicídios ocorridos em Copacabana. Segundo o comte. foram mais de 20 casos. Hoje tivemos a notícia de que 02 idosos teriam se jogado pela janela do nº 47 da Rua Santa Clara.” A coisa é séria e é muito triste. A extrema felicidade da babel cosmopolita agride a solidão dos velhos e solitários. O abandono é cruel. A obrigação de também ser feliz, mesmo não encontrando motivos para sê-lo, é o adubo que alimenta as raízes dessas plantinhas tristes que chamam de suicidas. Segue um pedacinho da letra de um samba que compus há tempos:

Ninguém há de viver seu sonho ou seu pesadelo
ninguém vai dormir por você
nem há se sonhar sua dor, viver seu desespero
ninguém vai gozar por você
Viver não tem drama.
Há solidão nos velhos que cruzam a rua
quase a se arrastarem
Há solidão naquele silêncio profundo
que seus olhos trazem
A solidão: companheira fiel do seu jantar.


 


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