segunda-feira, junho 01, 2020

Cenas de Copacabana - Domingo



foto: João Gabriel A.









Experimente ler a crõnica ouvindo:  https://www.youtube.com/watch?v=VGAWunS-i10

Copacabana. Domingo de Páscoa, nublado e calmo. Sob o céu cinza do Rio de Janeiro paira, misteriosamente, uma certa violência velada. Atravessei apressado a Hilário de Gouveia. Seguia a pé para a Sala Baden Powell, na Nossa Senhora de Copacabana, onde ouviria Música Brasileira de Concerto. Biscoito fino oferecido pelos lábios e dedos de um trio feminino, flauta, violoncelo e piano que preencheriam meu fim de tarde. A tranquilidade do passeio sofreu o primeiro impacto em frente a Delegacia de Polícia, ainda na Hilário, onde um grupo armado de policiais acompanhava um jovem, não mais que 18 anos, algemado. A cena surpreendeu-me por ser real, por vê-la ao vivo, fora da televisão. A tranqüilidade estampada na cara do jovem delinqüente parecia denunciar vasta experiência nesse trajeto. Havia um quê de traquejo naquela pose orgulhosa. Cabeça erguida, caminhou em direção a delegacia para autuação, creio. A visão trágica da juventude encarcerada e sem futuro me deixou cabisbaixo. Caminhei com certo desconforto, como se houvesse culpa em estar livre para saborear o banquete da cultura, enquanto outros se metem no caos do cárcere. Que caminhos distintos percorremos por essa vida? Tudo força das engrenagens sócio-econômicas ou haveria um espaço para a mão do fado? Basicamente nada nos difere, porém sigo meu caminho, agora menos tranqüilo que o olhar do jovem que adentrou a delegacia. Em frente ao Pavão Azul, outros jovens divertiam-se tomando cerveja, em pé, em algazarra, imunes ao drama que transcorria ali tão perto de seu sossego. Atravessei a Barata Ribeiro e segui em direção a Paula Freitas. Na esquina, o Real Chopp mostrava um bando de rubro-negros bebendo a espera do início da transmissão de uma partida de futebol. Caminhei pela Paula Freitas, entrei na Avenida Nossa Senhora de Copacabana e segui em direção ao teatro. Final de um domingo imprensado em feriadão, calma total. Cristo morto, Cristo ressuscitado. Tédio. Ou quase. Um grito, um choro, um pedido “Não me bate, moço”. Assustado, vi-me diante de uma cena cruel. O segurança de uma farmácia segurava um jovem negro pelo braço e descia-lhe a porrada, sem dó, inclemente, como um centurião romano e seu chicote. O garoto, magro, com jeito de quem estava dopado por álcool ou qualquer outra droga, caiu na calçada. O segurança partiu para cima, como quem, faminto, avança num prato de comida. Mão fechada, punho-aríete, na cara, sem titubear. O jovem chorava um choro sentido e, para mim que me peguei surpreso com tudo aquilo, sem sentido. Ou seria fingido aquele choro tão eloqüente? Vá saber! Mas que era dolorido ouvi-lo lamentar a queda, a surra, era. Uma mulher tomou as dores da vítima e protegeu-a de mais pancadas. Ele, recompondo-se, sentou-se no meio fio, cabeça baixa, mofino. O segurança, exaltado, discutia com a boa samaritana deste domingo. A tudo assisti, passivo, incrédulo, estático. Aquilo estava mesmo acontecendo? Retomei a minha caminhada, devagar, ouvindo o choro do rapaz, agora ecoando em mim. Dois jovens, o futuro perdido nas ruas de Copacabana. E eu, sem desviar de meu caminho, segui para a Sala Baden Powell para ouvir Francisco Mignone, Villa-lobos e outros desconhecidos compositores brasileiros.

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