quinta-feira, julho 23, 2009

Intermezzo II - Em nome do pai - uma leitura de "Lavoura arcaica"

Deixo aqui, para quem quiser se aventurar, uma leitura muito particular que fiz da obra de Raduan Nassar, Lavoura arcaica. Trata-se de um pequeno artigo que redigi durante o mestrado em Literatura Brasileira na Universidade de Brasília. Quero deixar claro que, por absoluta preguiça, nao fiz a revisão do texto para sua adequação às novas normas ortográficas. Sinceramente? Fodam-se essas normas, há revisores para isso, e eu não sou, nem estou revisor, portanto relevem os deslizes. O tema e todo referencial teórico têm sua validade e seu lugar, daí porque gosto muito desse pequeno ensaio. Para os que tiveram o prazer de ler o romance e a adaptação cinematográfica (maravilhosa, quero logo deixar explícita minha paixão pelo filme), que se divirtam com este ensaio.




EM NOME DO PAI

“Tudo tem seu tempo, há um momento oportuno para cada empreendimento debaixo do céu. Tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de colher a planta.” (Eclesiastes, 3:1-2). A voz ancestral ecoa ainda em nossos ouvidos, dissemina-se pelos quatro cantos da terra, assegurando-nos que devemos esperar o momento propício. Essa espera, para alguns, como André, o protagonista de Lavoura arcaica, romance de Raduan Nassar, é insuportável.

Este pequeno ensaio tem como meta mergulhar no tempo mítico do homem, resgatando junto ao texto de Raduan Nassar os elementos que vêm ao encontro de uma perspectiva humanista, vistos sob um filtro histórico que compreende a escalada humana.

Ao pensar a obra, o suporte material do artefato, como portadora de um conteúdo manifesto, racionalizado pelo autor, e oferecido aos leitores como sua visão peculiar, particular, de eventos que, à sua maneira, sob sua ótica, julgou compor, o crítico menos prevenido corre o risco de lançar seu olhar sobre a ponta de um iceberg, e nesse caso, estaria inconscientemente abrindo mão de mergulhar numa camada de texto mais profunda, e por isso mesmo, mais reveladora da obra. Nesse sentido, considerando a existência de um conteúdo latente sob a aparente capa da narrativa em Lavoura arcaica, conteúdo este que, independente da intenção do autor, está a emitir sua voz muda por entre as palavras, lançarei um olhar atento, analítico, sob certas estruturas ou elementos presentes nos discursos das personagens que julgo representarem, muito mais que a simples questão do incesto e o tabu, o choque entre o Pai (Iohána) , enquanto esfera apolínea da ordem e do cosmos, símbolo da civilização, e o filho (André) , elemento emblemático do homem em sua sede de liberdade e busca do prazer, representante dionisíaco da transcendência, do caos, do devir enquanto tal.
Em Lavoura arcaica, romance de Raduan Nassar, publicado em 1975, o autor compõe, numa narrativa vigorosa e de feição lírica, a tragédia de uma família de camponeses cujo pai comete o assassinato da própria filha sob suspeita de incesto com o filho André. O enredo do romance, em poucas linhas, não fornece ao leitor, de imediato, a força e a beleza com que é tratada a tragédia no texto, pelas mãos hábeis do desertor da literatura . No romance, o que salta aos olhos é o atrito, bem narrado e composto pelo autor, entre uma ordem que, de maneira comedida, quer se manter no poder e sobreviver, representada pelo pai, e outra via de entendimento do mundo, que é abraçada pelo discurso apaixonado do jovem André. Não é por outro motivo que o velho Iohána diz ao filho: “- Cale-se! Não vem desta fonte a nossa água, não vem destas trevas a nossa luz, não é a tua palavra soberba que vai demolir agora o que levou milênios para se construir; [...]; por isso, dobre a língua, eu já disse, nenhuma sabedoria devassa há de contaminar os modos da família!” (Lavoura arcaica, p.169)

Agindo como um psicanalista, de linha freudiana, e nesse sentido considerando o texto como um paciente, e que a verdadeira forma de sua consciência está, não no que nos diz, mas no que tenta esconder, devemos considerar os discursos de André, de seu pai e do irmão Pedro, como o afloramento de algo muito maior que o simples choque de gerações. A figura do pai é símbolo de duplo significado, ao mesmo tempo que podemos interpretá-la como representante da ordem, do valor, do trabalho, da norma, do todo organizado, englobando tudo o que decorre dessa representação: a repressão, o castigo, o comedimento, a dominação e a posse, e portanto assumindo ares de um símbolo castrador, por outro lado, podemos interpretá-la como a eventualidade do oposto, da possibilidade do novo, da geração, da viável , mas nem sempre possível, transcendência e superação.

Ele (o pai) é uma representação de toda forma de autoridade: chefe, patrão, professor, protetor, deus. O papel paternal é concebido como desencorajador dos esforços de emancipação, exercendo uma influência que priva, limita, esteriliza, mantém na dependência. Ele representa a consciência diante dos impulsos instintivos, dos desejos espontâneos, do inconsciente; é o mundo da autoridade tradicional diante das forças novas de mudança.

O Pai, assim como Uróboro – a serpente mitológica que morde o próprio rabo, encerra em si sua própria antítese: é caos e cosmos, apolo e dionísio, norma e anarquia, “contém ao mesmo tempo as idéias de movimento, de continuidade, de autofecundação e, em conseqüência, de eterno retorno” . Por esse caráter duplo é que, para a superação do reino do pai, faz-se necessário o confronto, a supressão do pai, a instauração de nova ordem que surge no filho. Iohána, em seu discurso de tom bíblico e sábio, não tem consciência de que é matriz de sua própria superação, seu filho André porta o discurso da inexorável nova ordem.

eu tinha de gritar em furor que a minha loucura era mais sábia que a sabedoria do pai, que a minha enfermidade me era mais conforme que a saúde da família, que os meus remédios não foram jamais inscritos nos compêndios, mas que existia uma outra medicina ( a minha!), e que fora de mim eu não reconhecia qualquer ciência, e que era tudo só uma questão de perspectiva, e o que valia era o meu só o meu ponto de vista, (Lavoura arcaica, p.111)

Então tudo não passa do choque entre potências opostas? O Pai na defensiva, paciente, moderado, senhor do discurso e da razão; e do outro lado, o filho, rebelde, ingênuo, ousado e petulante, empunhando a bandeira da paixão irrefreada? Aparentemente sim, mas o que me interessa no embate entre Iohána e André, é situá-los num esquema maior, como representantes da civilização (o homem coletivo) e do indíviduo (o homem por si).


EM NOME DO FILHO

Selton Melo na adaptação cinematográfica do romance "Lavoura arcaica"


Começo esta parte pela citação direta de Freud: “A palavra ‘civilização’ descreve a soma integral das realizações e regulamentos que distinguem nossas vidas das de nossos antepassados animais, e que servem a dois intuitos: o de proteger os homens contra a natureza e o de ajustar os seus relacionamentos mútuos”

A partir de uma definição como essa, de aparente simplicidade, e mesmo até de total falta de originalidade, podemos iluminar a via escolhida de interpretação do texto. Presumindo-se que o Pai encarna a civilização, e nesse sentido suas palavras são norma de conduta em comunidade, é de se esperar que encontremos no texto a ratificação dessa hipótese. E certamente encontramos, a cada discurso proferido pelo velho Iohána, ou mesmo quando é citado por seus filhos, principalmente por André, a ocorrência da regra, da lei. A família, encabeçada pelo pai, é o microcosmo da civilização, e é nela que se representa o duelo mítico do homem em face da comunidade. A família, como a civilização no conceito freudiano, dá abrigo, carinho, afeto, consolo: “O amor, a união e o trabalho de todos nós junto ao pai era uma mensagem de pureza austera guardada em nossos santuários, comungada solenemente em cada dia, fazendo o nosso desjejum matinal e o nosso livro crepuscular;” (Lavoura arcaica, p.22); “- Você sempre teve aqui um teto, uma cama arrumada, roupa limpa e passada, a mesa e o alimento, proteção e muito afeto.” (Lavoura arcaica, p.160)

Repousa sobre essa visão de comunidade, que aqui fazemos questão de identificar à esfera da civilização, a idéia de que apenas e tão somente dessa forma, é possível ao homem sobreviver e perpetuar-se. Ainda iluminados pelos estudos de Freud, percebemos que o preço pago pelo homem, para viver em sociedade, é justamente o que tem de mais característico em si: sua liberdade. Civilização, nas palavras do grande pensador, não combina com liberdade: “A liberdade do indivíduo não constitui um dom da civilização.[...] O desenvolvimento da civilização impõe restrições a ela, e a justiça exige que ninguém fuja a essas restrições.”

humilde, o homem abandona sua individualidade para fazer parte de uma unidade maior, que é de onde retira sua grandeza; só através da família é que cada um em casa há de aumentar sua existência, é se entregando a ela que cada um em casa há de sossegar os próprios problemas, é preservando sua união que cada um em casa há de fruir as mais sublimes recompensas; (Lavoura arcaica, p.148)


É lógico então deduzir que, ao mesmo tempo em que a família se encarrega de proteger, cuidar e velar pelos seus, como forma de manter-se enquanto família, como grupo, deve apresentar também suas regras, suas normas, impor limites e sanções. E essa postura legalista tem seu fundamento na repressão aos instintos básicos do homem, na castração de suas pulsões vitais, do princípio do prazer.

Raduan Nassar


A civilização só é viável a partir do momento em que consegue, por mecanismos próprios, desviar o indivíduo do princípio natural do prazer para o princípio da realidade, sendo este assentado sobre o trabalho e sobre a abdicação forçada dos instintos sensuais primitivos. Se assim não fosse, o caos, na sua mais literal interpretação, estaria estabelecido, guiando-se o mundo pela sucessão selvagem do poder entre fortes. Marcuse afirma que “se tivessem liberdade de perseguir seus objetivos naturais, os instintos básicos do homem seriam incompatíveis com toda a associação e preservação duradoura: destruiriam até aquilo a que se unem ou em que se conjugam. O Eros incontrolado é tão funesto quanto a sua réplica fatal, o instinto de morte.”

Ao optar por viver em sociedade, o ser humano viu-se privado de sua liberdade, caracterizada fundamentalmente, pelo seu direito ao prazer. Civilização então, torna-se sinônimo de repressão à libido. Essa repressão, durante os séculos, foi efetivada por leis, por preconceitos, por procedimentos culturais, e infiltrou-se no inconsciente coletivo. A família de Iohána, prega suas leis, seja através do discurso paterno: “Por isso, ninguém em nossa casa há de dar nunca o passo mais largo que a perna [...]; e ninguém em nossa casa há de colocar nunca o carro à frente dos bois [...];e ninguém ainda em nossa casa há de começar nunca as coisas pelo teto” (Lavoura arcaica, p.55)

Ou através de Pedro, o filho mais velho:

e que para manter a casa erguida era preciso fortalecer o sentimento do dever, venerando os nossos laços de sangue, não nos afastando da nossa porta, respondendo ao pai quando ele perguntasse, não escondendo nossos olhos ao irmão que necessitasse deles, participando do trabalho da família, trazendo os frutos para casa, ajudando a prover a esa comum, e que dentro da austeridade do nosso modo de vida sempre haveria lugar para muitas alegrias, a começar pelo cumprimento das tarefas que nos fossem atribuídas, pois se condenava a um fardo terrível aquele que se subtraísse às exigências sagradas do dever; (Lavoura arcaica, p. 23)

Pedro, a quem competiu a missão de resgatar o irmão perdido e trazê-lo ao aconchego da família, é , sem sombra de dúvidas, a perpetuação do discurso conformista e legalista de Iohána. Encarna a cega obediência às leis, ao princípio da ordem e da razão. Por isso mesmo tem seu lugar à mesa, justamente à direita do pai “O galho da direita era um desenvolvimento espontâneo do tronco, desde as raízes” (Lavoura arcaica, p.156). A subjugação dos instintos, imposta pelo pai à família, encontra sua eficácia na figura de Pedro que acaba por encarnar o indivíduo escravizado que “introjeta seus senhores e suas ordens no próprio aparelho mental.” Também não é por outra razão que se chama Pedro, homônimo do apóstolo de Cristo, sobre o qual assentou sua igreja. Pedro, de pedra, rocha, é imutável, é o continuador, a sentinela atenta, completamente integrado aos ditames do pai, da família. Suas ações e palavras saem de uma mesma e atemporal língua: a do pai primordial, ancestral. Tem a incumbência de manter tudo como está, e a família, para tal objetivo, não vacila em emitir suas sanções quando ameaçada:

ai daquele que brinca com fogo: terá as mãos cheias de cinza; ai daquele que se deixa arrastar pelo calor de tanta chama: terá a insônia como estigma; ai daquele que deita as costas nas achas desta lenha escusa: há de purgar todos os dias; ai daquele que cair e nessa queda se largar: há de arder em carne viva; ai daquele que queima a garganta com tanto grito: será escutado por seus gemidos; ai daquele que se antecipa no processo das mudanças: terá as mãos cheias de sangue; ai daquele, mais lascivo, que tudo quer ver e sentir de um modo intenso: terá as mãos cheias de gesso, ou pó de osso, de um banco frio, ou quem sabe sepulcral, mas sempre a negação de tanta intensidade tantas cores: acaba por nada ver, de tanto que quer ver; acaba por nada sentir, tanto que quer sentir; acaba só por expiar, de tanto que quer viver; cuidem-se os apaixonas, afastando dos olhos a poeira ruiva que lhes turva a vista, arrancando dos ouvidos os escaravelhos que provocam turbilhões confusos, expurgando do humor das glândulas o visgo peçonhento e maldito; (Lavoura arcaica, p.57/58)

O processo de transferência do princípio do prazer para o da realidade dá-se na caminhada humana, das estepes aos salões de chá elegantes. É óbvio que uma ruptura tão profunda, mesmo que lentamente efetivada, deixa marcas visíveis na psiquê humana. Os indivíduos trazem dentro de si, latente e sufocado, o desejo reprimido durante o processo histórico da barbárie à civilização. É de se esperar que eventualmente essas pulsões se manifestem, irrompam surpreendentemente no seio cálido e sereno das melhores famílias. André exercita o direito de afirmar-se e reivindica seu espaço, seu direito ao prazer, pois “o que a civilização domina e reprime – a reclamação do princípio do prazer – continua existindo na própria civilização. O inconsciente retém os objetivos do princípio do prazer.” Nesse sentido, uma das mais importantes estratégias utilizadas pela civilização para conter e controlar os impulsos individuais foi, sem sombra de dúvidas, a ênfase no trabalho.

Nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão firmemente à realidade quanto a ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana. A possibilidade que essa técnica oferece de deslocar uma grande quantidade de componentes libidinais, seja eles narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos, para o trabalho profissional, e para os relacionamentos humanos a ele vinculados, empresta-lhe um valor que de maneira alguma está em segundo plano quanto ao de que goza como algo indispensável à preservação e justificação da existência em sociedade. (FREUD, Mal-estar na civilização, p.99)

Nessa luta surda do homem com sua máxima realização, a vida em sociedade, é de fundamental importância a interferência sempre presente do componente erótico. E erótico aqui não se reduz aos desejos sensuais de Afrodite, mas a algo muito mais amplo que está diretamente ligado ao princípio do prazer. Eros, portanto, tem um papel crucial na manutenção do espírito de liberdade e na erupção de comportamentos de revolta às normas estabelecidas. Apesar de toda a aparente calma com que se revestem os sistemas sociais, a presença incômoda de Eros está latente em todos os indivíduos, dos menores gestos e contravenções, aos grandes movimentos sociais.

Entretanto, Eros não está morto. Não obstante a tremenda conspiração ideológica adversa, ele sobrevive. A igreja pretende destruí-lo, o mercado manipulá-lo, a moral desqualificá-lo, mas o Homo eroticus aí está livre, indomável, ao menos em poucos exemplares. Não logrando espaço na sociedade oficial, ele assume formas alternativas [...] Em suma, os tipos desprivilegiados, cujo comportamento não se enquadra nos estreitos limites dos dogmas da sociedade burguesa.

Mas o que importa neste ensaio é verificar a sua ação decisiva no comportamento de André e na consecução da trama narrativa de Lavoura arcaica.

A fuga do protagonista, provocada pela sua insubmissão e revolta, motivada pelo suposto incesto e pelo desenvolvimento de um sentido sensual amplo que não encontrou espaço sob a rigidez de conduta na família, e sua volta, arquitetada pelo irmão mais velho, um personagem construído sob o molde paterno, com quem se identifica e mesmo se confunde, tem, obviamente a marca de uma ação erótica.

Na realidade, a grande ameaça à estabilidade familiar, que aqui estamos considerando emblema da civilização, é a quebra da estrutura de poder assentada na norma e na submissão. Mais que isso, há em Lavoura arcaica, sob o discurso de Iohána, o primado da razão enquanto regra de sobrevivência e controle social. A paixão, via dionisíaca de transcendência e concretização do princípio do prazer, é ameaça, é perigo, deve ser combatida sob pena de extinção. Iohána não está alienado quanto a esse perigo:

o mundo das paixões é o mundo do desequilíbrio, é contra ele que devemos esticar o arame das nossas cercas, e com as farpas de tantas fiadas tecer um crivo estreito, e sobre este crivo emaranhar uma sebe viva, cerrada e pujante, que divida e proteja a luz calma e clara da nossa casa, que cubra e esconda dos nossos olhos as trevas que ardem do outro lado; e nenhum entre nós há de transgredir esta divisa, nenhum entre nós há de estender sobre ela sequer a vista, nenhum entre nós há de cair jamais na fervura desta caldeira insana, onde uma química frívola tenta dissolver e recriar o tempo; (Lavoura arcaica, p.56/57)

Debatendo-se contra a perda do filho amado, que o velho pressente estar escapando a seu férreo controle, ele vaticina: “- Você está enfermo, meu filho, uns poucos dias de trabalho ao lado de teus irmãos hão de quebrar o orgulho de tua palavra, te devolvendo depressa a saúde de que você precisa.” (Lavoura arcaica, p.161)

E vemos então o trabalho sendo engenhosamente receitado como antídoto à peçonha das pulsões instintuais inoculadas por Eros.

Iohána, o pai

APOLO E DIONISO – O EMBATE NAS TREVAS

Como qualquer sistema, a família de Iohána , inconscientemente, sabe que traz em si a causa de sua própria ruína. A civilização, como prolongamento da família, tem consciência das ameaças que rondam sua sobrevivência, e certamente a questão erótica ocupa lugar de destaque como inimiga do equilíbrio. É de Pedro, ao conversar com o irmão na penumbra de um quarto, que parte o alerta: “mas que era preciso refrear os maus impulsos, moderar prudentemente os bons, não perder de vista o equilíbrio, cultivando o autodomínio, precavendo-se contra o egoísmo e as paixões perigosas que o acompanham,” (Lavoura arcaica, p.24)

É sintomático que o encontro entre os irmãos dê-se na escuridão. A luz é elemento apolíneo, portanto está diretamente ligada à ordem das coisas, ao equilíbrio, ao comedimento. André simboliza o indivíduo em busca de sua ordem própria, portanto não poderia estar sob a luz do mesmo mundo que seu irmão. Das trevas fez-se a luz e é a luz própria que André busca, e ele só poderá encontrá-la a partir da escuridão, que abraça o caos e engendra o novo cosmo.

André está engajado numa cosmogonia individual e ao encontrar o irmão, representante daquilo que ele combate e quer transcender, sacia-se com o vinho, símbolo do conhecimento e da iniciação, devido à embriaguez que provoca. Está associado ao sangue, à vida, à alegria, elemento dionisíaco de pura transcendência . Dioniso é o deus grego do teatro, do vinho. Encarna a possibilidade humana de tocar o divino, de transcender a esfera terrestre, de superar a ordem apolínea e, a partir do caos inebriante, alcançar o sagrado, e por esse motivo é elemento desagregador, subversivo. Através do vinho, cujo efeito inebriante tem a propriedade de desvelar o inconsciente, rompendo as barreiras do ego, André se expõe ao irmão. É óbvio o descompasso entre os discursos de ambos, mesmo porque falam a partir de dimensões distintas, praticamente opostas. Enquanto representante da velha ordem, Pedro cumpre seu papel de convencer o irmão a assumir o erro e retornar ao sistema familiar. André tenta arrastá-lo em sua desesperada luta pela liberdade e pelo direito de ser. Na tentativa de cooptá-lo e julgando harmonizar seus discursos, oferece-lhe vinho para que celebrem Dioniso: “Pedro, Pedro, é do teu silêncio que eu preciso agora,[...] por isso molhe os lábios, molhe a boca, molhe teus dentes cariados, e a sonda que desce para o estômago, encha essa bolsa de couro apertada pelo teu cinto, deixe que o vinho vaze pelos teus poros, só assim é que se cultua o obsceno” (Lavoura arcaica, p.69)

Há nesta passagem a representação típica do ritual dionisíaco enquanto via de acesso à outra dimensão humana. André sente que seu caminho está muito além do que o irmão tenta lhe oferecer. Pedro, por sua vez, pressente a ameaça que representa a atitude revoltosa do irmão, e estrategicamente aceita partilhar com ele o vinho. Vemos aqui a metáfora dos ardis da civilização, como o de qualquer sistema, que tenta sobreviver. Na realidade qualquer regime social, político ou econômico tem consciência de que é preciso haver certas concessões aos componentes antagônicos para que a estrutura inteira permaneça incólume, sob pena de explodir completamente. A civilização permite certos “excessos” não porque seja boazinha, mas porque sabe como controlá-los e mantê-los em seus limites e, mais que isso, tem a total consciência de que esses pequenos “excessos” lhe conferem uma falsa aparência de condescendência e democracia. Nada mais hipócrita, nada mais engenhoso. Por esse caminho é que Pedro acompanha o irmão na bebedeira daquele momento sagrado: “ ‘ah, meu irmão, começamos a nos entender, pois já vejo tua boca descongestionada, e nos teus olhos a doce ação do vinho fazendo correr o leite azul que espirra agora das pupilas,” (Lavoura arcaica, p.70)

Mas esse “leite azul” que mancha as pupilas de Pedro, não é o mesmo leite azul que inebria a alma apaixonada de André. De forma alguma falam a mesma língua, têm as mesmas visões, compartilham os mesmos anseios. Na realidade estão na postura de dois combatentes lutando acirradamente por espaço e por poder. André já tem consciência de seu caminho inexorável para a liberdade. Apesar de portar a cicatriz dolorida da velha ordem imposta pelo pai, já se sente o portador do caos e o desagregador da estrutura familiar. Neste momento, sabe que não há outra via, conseguiu desvelar a podridão de uma estrutura que não lhe cabe. André desceu ao inferno e de lá pôde ver com clareza o obstáculo que pretende ultrapassar:

tudo, Pedro, tudo em nossa casa é morbidamente impregnado da palavra do pai; era ele, Pedro, era o pai que dizia sempre é preciso começar pela verdade e terminar do mesmo modo, era ele sempre dizendo coisas assim, eram pesados aqueles sermões de família, mas era assim que ele os começava sempre, era essa a sua palavra angular, era essa a pedra em que tropeçávamos quando crianças, essa a pedra que nos esfolava a cada instante, vinham daí as nossas surras e as nossas marcas no corpo, veja, Pedro, veja nos meus braços (Lavoura arcaica, p.43)

Sua repulsa aos sermões paternos, enquanto instauradores da ordem familiar, é fruto de vasta observação e convivência. Tenta compartilhar sua visão com o irmão que julga estar compreendendo seu discurso fantástico. Há ingenuidade nessa postura de André, mas não se poderia esperar maturidade num processo de eterno crescimento. Mesmo assim, esse pequeno processo de cegueira, tem seu desfecho na coerência do irmão que, como representante do cosmo organizado, sabe a hora de reagir, pressente o perigo, e atento ao limite recusa o vinho que lhe é oferecido, num sinal evidente de que não compartilham o mesmo ritual: “ mas assim que esbocei entornar mais vinho foi a mão de meu pai que eu vi levantar-se no seu gesto ‘eu não bebo mais’ ele disse grave, resoluto, estranhamente mudado, ‘e nem você deve beber mais, não vem deste vinho a sabedoria das lições do pai’ ele disse com um súbito traço de cólera no cenho” (Lavoura arcaica, p. 40)

A cólera de Pedro tem sua razão de ser, é o momento de reagir, não se deixar levar pelas idéias subversivas do irmão embriagado, de não se deixar contaminar pela paixão desregrada, por não cometer nada que signifique apoio ao demolidor discurso que provém de seu sangue rebelado. André agora é uma ameaça, um tumor a ser tratado, um elemento desestabilizador da família. André é o homem assumindo-se indivíduo, enfrentando a repressão natural do sistema e ele tem consciência de sua postura, sabe muito bem que sua posição engendra um caminho sem retorno, e que sua figura agora é a do disseminador do caos. André neste instante é o anjo caído numa luta titânica. Ele, como uma espécie de Prometeu, porta o fogo da paixão e há de enfrentar a fúria do pai. Mas é em nome do pai que ele um dia será, em função desse destino que todo ser humano tem de cumprir, assumir seu próprio risco, tomar sua própria direção, que André, sem autopiedade, orgulhoso, assume a figura do enjeitado. Todo sistema organizado em sociedade rejeita aqueles que, de alguma maneira não se enquadram em suas normas. São os marginais da arte, os perniciosos, os devassos; para essas pessoas o espaço que lhes é concedido pela civilização é o ostracismo, ou quando muito, o lugar de figuras excêntricas. Nesse momento, não resta a André outra alternativa a não ser assumir sua posição:

pertenço como nunca desde agora a essa insólita confraria dos enjeitados, dos proibidos, dos recusados pelo afeto, dos sem-sossego, dos intranqüilos, dos inquietos, dos que se contorcem, dos aleijões com cara de assassino que descendem de Caim (quem não ouve a ancestralidade cavernosa dos meus gemidos?), dos que trazem um sinal na testa, essa longínqua cicatriz de cinza dos marcados pela santa inveja, dos sedentos de igualdade e de justiça, dos que cedo ou tarde acabam se ajoelhando no altar escuso do Maligno (Lavoura arcaica, p.139)

O choque inevitável entre Pedro (pai, família, civilização , ordem, Apolo, razão) e André, (homem, prazer, caos, Dioniso, paixão) é ponto crucial do texto, uma vez que Pedro está em pé de igualdade com o irmão, mas ocupando o galho “saudável” da árvore da família . Inebriados, discutem sua amargas diferenças e de André parte a cisão:

você pode como irmão mais velho lamentar num grito de desespero ‘é triste que ele tenha o nosso sangue’ grite, grite sempre ‘uma peste maldita tomou conta dele’ e grite ainda ‘que desgraça se abateu sobre a nossa casa’ e pergunte em furor mas como quem puxa um terço ‘o que faz dele um diferente? ‘ e você ouvirá, comprimido assim num canto, o coro sombrio e rouco que essa massa amorfa te fará ‘traz o demônio no corpo’ e vá em frente e vá dizendo ‘ele tem os olhos tenebrosos’ e você há de ouvir ‘traz o demônio no corpo’ e continue engrolando as pedras desse bueiro e diga num assombro de susto e pavor ‘que crime hediondo ele cometeu!’ (Lavoura arcaica, p.42)

E porque justamente o demônio invadiu sua alma? Porque acaba “se ajoelhando no altar escuso do Maligno” ? Lúcifer, Satanás, o anjo torto que ousou enfrentar o poder divino? Sim, é justamente essa faceta demoníaca que aflora nesta passagem. André tem o demônio no corpo e por isso ousa desafiar o pai, a família, o tempo, a estabilidade de um sistema que se mantém sob o gemido rouco dos submissos . Ele, o senhor das trevas e do caos é neste momento o senhor de André. A figura rebelde de Lúcifer comporta inúmeras interpretações mas o caráter de revolta e insurreição nesse mito bíblico é evidente. E a narrativa de Raduan Nassar em Lavoura arcaica é carregada desse sabor evangélico. Os discursos se sucedem, seja do pai, de Pedro ou de André, repletos de referências e tons bíblicos, realçando o caráter arcaico e mítico da obra, oscilando entre o sagrado e o profano; em certas passagens compondo maravilhosas parábolas. A narrativa em Lavoura arcaica é atemporal, as personagens são muito mais do que pretende seu autor. O conteúdo latente em cada sermão, cada discurso, nos permite visualizar o próprio movimento humano pela história, na sua luta árdua pela liberdade e pelo crescimento, apesar de toda a repressão, de todas as leis, de todas as normas.

CONCLUSÃO - EM NOME DO NOVO PAI

André aos poucos percebe que sua batalha o encaminha ao ponto de partida. É necessário suprimir o pai e tudo o que ele representa, mas ele sabe que essa supressão implica que ele assuma o espaço que há de lhe surgir. É evidente que não há espaço para duas visões díspares, o que os une é apenas a vontade de impor suas normas e regras; o que os distingue são suas normas e regras. André quer o seu lugar na mesa da família e é isso que diz ao pai com todo o vigor e clareza. Nesse ponto, André tornar-se-á de certa forma o novo pai, por isso ele diz que “não importava que eu, caminhando, me conduzisse para regiões cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, era um cascalho, um osso rigoroso, desprovido de qualquer dúvida: ‘estamos indo sempre para casa’ “ (Lavoura arcaica, p.36)

Nesse processo de natural de superação da figura paterna André, ao contrário de Pedro que é cópia fiel de Iohána e com ele partilha todos os preceitos, é, de certa maneira, a imagem do pai refletida num espelho turvo. Por seus pontos de contato se assemelham, são duas potências em conflito, de igual poder, de pólos contrários. Vem daí a incapacidade de comunicarem-se, de entenderem-se, é a linha prestes a se romper definitivamente: “- Não acredito na discussão dos meus problemas, não acredito mais em troca de pontos de vista, estou convencido, pai, de que uma planta nunca enxerga a outra.” (Lavoura arcaica, p.162)

Cena do filme "Lavoura arcaica"

Lavoura arcaica surpreende pelo estilo do narrador, por passagens que beiram a mais pura poesia; intencionalmente composto como uma quase trágica parábola, digo quase porque ao assassinato de Ana faltam a consciência do destino trágico e a assunção da fatalidade. Ana age como motivo para o desabrochar das paixões em André. É através dela que se revelam à personagem os meandros das relações familiares. É ela o portal pelo qual o protagonista, cruzando-o, assume sua perdição e redenção. As personagens em Lavoura arcaica são emblemas do homem e da civilização, e por esse motivo os conflitos são inevitáveis.

André ousa colocar o carro na frente dos bois, não lhe resta outra alternativa se pretende sobreviver enquanto homem, indivíduo. Sobre todos eles, notadamente sobre o pai, Pedro e André, o tempo mítico a cobrir suas paixões:

Tempo de chorar,
E tempo de rir;
Tempo de gemer,
E tempo de dançar.
Tempo de atirar pedras,
E tempo de ajuntá-las;
Tempo de abraçar,
E tempo de separar. (Eclesiastes, 3:4-5)

Em Eclesiastes, como em milhares de outros textos, populares ou eruditos, esse eterno conflito humano é retratado. Resta-nos a arte como consolo diante do inexorável: somos nada. Mas é justamente no reconhecimento de nossa pequenez, nossa insignificância perante a natureza e ao tempo, que reside nossa maior arma: a arte . É ela que nos brinda com o texto fantástico de Raduan Nassar, que nos faz compreender a beleza e o horror das coisas que construímos, e nos faz caminhar eretos e orgulhosos à beira do abismo misterioso.

André somos todos nós em algum momento de nossas vidas, Iohána também somos todos nós. Em algum momento de nossa caminhada acreditamos ser possível mudar o mundo, quebrar as normas, erguer barricadas, salvar o planeta. Com certeza lembramos com carinho esses momentos em que, como o jovem André, afundávamos os pés na terra, entre as folhas caídas, e dela nos apossávamos, senhores do mundo e de nossos próprios narizes. E é bem provável que naquele momento mágico não havia espaço para nossos pais. Com toda certeza, naquele instante raro que deixamos guardado em alguma gaveta empoeirada da memória, éramos, e isso nos bastava.

O poeta popular nos diz: “Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos. Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais.” E um outro André, em algum lugar ou tempo indefinidos, poderá também dizer ressabiado: “o pai à cabeceira, o relógio de parede às suas costas, cada palavra era ponderada pelo pêndulo, e nada naqueles tempos nos distraindo tanto como os sinhos graves marcando as horas.” (Lavoura arcaica, p.49)


NOTAS
1 Leyla Perrone-Moisés no ensaio Da cólera ao silêncio publicado nos Cadernos de Literatura Brasileira, diz: “No progresso da rejeição ao mundo e às palavras que pretendem dizê-lo ou melhorá-lo, rejeição que atinge seu ápice em Um copo de cólera , prefigura-se a atitude posterior de Raduan Nassar: ‘abandonar a literatura’ e declarar com sarcasmo que a única criação a que se dedicaria doravante seria a de galinhas.” (Cadernos de literatura Brasileira, número 2, 1996, p.74)
2 Chevalier e Gheerbrant, Dicionário dos símbolos, p.678
3 ibid. p.922
4 FREUD, Sigmund, Mal-estar na civilização, in Obras Completas, Vol.XXI, p.109.
5 FREUD, Sigmund, op.cit., p.116
6 MARCUSE, Herbert, Eros e Civilização – Uma interpretação filosófica do pensamento de Freud, 8a. ed., p.33
7 ibid., p.37
8 MARCUSE, Herbert, op.cit., p.37
9 NUNES FILHO, Nabor, Eroticamente Humano, 1994, p. 33
10Segundo CHEVALIER e GHEERBRANT, “o homem recorre à embriaguez física como meio de acesso à espiritual, libertando-se do condicionamento do mundo exterior, da vida controlada pela consciência.” (Dicionário de Símbolos, p. 364)
11 “Eram esses os nossos lugares à mesa na hora das refeições, ou na hora dos sermões: o pai à cabeceira; à sua direita, por ordem de idade, vinha primeiro Pedro, seguido de Rosa, Zuleika e Huda; à sua esquerda, vinha a mãe, em seguida eu, Ana, e Lula, o caçula. O galho da direita era um desenvolvimento espontâneo do tronco, desde as raízes;” (Lavoura arcaica, p.156)
12 “O demônio simboliza uma iluminação superior às normas habituais, permitindo ver mais longe e com mais segurança, de modo irredutível aos argumentos. Autoriza,mesmo, a violar as regras da razão em nome de uma luz transcendente, que é não só da ordem do conhecimento, mas também da ordem do destino.” (CHEVALIER e GHEERBRANT, Dicionário de símbolos, p.329)
13 “a arte oferece satisfações substitutivas para as mais antigas e mais profundamente sentidas renúncias culturais, e, por esse motivo, ela serve como nenhuma outra coisa, para reconciliar o homem com os sacrifícios que tem de fazer em benefício da civilização.” (FREUD, O Futuro de uma ilusão, in Obras completas, p.25)
14 Versos do compositor popular Belchior, “Como nossos pais”, cantada por Elis Regina em belíssimo arranjo no álbum “Falso brilhante”, de 1976