quarta-feira, junho 20, 2007

Logomaquia


Fotografia: Evgen Bavcar



logomaquia
um manifesto
o manefasto


I’m part of the problem, I’ m not the solution
I’m really the product of city pollution
Gil & Mautner


Junto ao corpo, em adiantado estado de decomposição, foram encontrados uma carteira de cigarros e de identidade amarrotados. Antonio Kruger, filho de Maria Carolina Nogueira Kruger e Heinrich Kruger, nascido em 16 de junho de 1960. Um medalhão esverdeado de São Bento e uma caderneta de capa vermelha com algumas anotações. Morrera de mal súbito, nenhum sinal de arrombamento, nada fora do lugar, apenas o corpo porejando um líqüido fétido sobre o tapete da sala-de-estar. A TV ligada no canal de esportes. O gato louco de fome, miando sem parar. Genuína, policial militar que primeiro avistara o cadáver, tocou discretamente a caderneta e leu na capa ensebada “Cartas disso e daquilo”. Cartas para quem? Curiosou-se toda e, naturalmente como toda mulher, não resistiu à tentação de abrir, aleatoriamente, o pequeno caderno, agenda, de capa vermelha. Em letra miúda, bem desenhada, firme e graciosa, ela penetrou o texto:
Zé, ando inventando coisas, criando visagens, compondo uns mundos a partir da decomposição de outros. Ando numa carpintaria estranha, Zé. Cansado, mas feliz da vida, pois vou tecendo manhãs feito galos, pintando auroras com sangue e leite e mel, meu amigo. Isso me dá um prazer dos diabos, mas também me dá um desespero divino. Zé, oscilo entre o acima e o abaixo, deslizando minhas escolhas para gretas as mais imprevisíveis, e aí faço universos inteiros. Estou cosmogônico, Zé. Você sabe lá o que é isso? Demiurgo extenuado, mas feliz da vida. O grande problema são as vozes que me pedem pra ouvir e ser ouvidas e traduzidas, e que penetram meus poros e sentidos com um sem-licença de puro pavor e ousadia. É o preço pago, meu amigo, por hesiodicamente ser e tentar pôr ordem naquilo que não tem. Bobok, bobok, bobok, os cadáveres loucos gritavam aos meus ouvidos moucos; bobok, bobok, bobok,  último lampejo de consciência num corpo morto-quase, e eu não sabia por onde começar meu texto louco; bobok, bobok, bobok, não sabia que nome dar pra ele, qual título; bobok, bobok, ratos roendo meus angustiados livros e minutos, a necessidade de morrer escrevendo, inventando mundos, seduzindo incautos, apavorando incultos; bobok, o homem enchendo dornas e a mulher lavando garrafas cujos selos pareciam trazer a palavra Bobok, e eu ali, pasmo e tedioso, acabara de sair do quarto sujo no terceiro andar e cruzara com o português dono daquela espelunca e a quem eu devia alguns meses de aluguel, ele me perguntou sobre o porquê da pressa e eu respondi que ia lecionar javanês para uma amiga na casa do sol que tinha o hábito de gravar vozes de fantasmas e que me assegurara ter escutado, entre os ruídos de pura estática, alguém surrurrando bobok, bobok, bobok, ele então me perguntou, cheio de preconceito, se Hilst era sobrenome judeu, pois parecia, e todo judeu que se preze não presta, preste toda a atenção do mundo, viu? Os judeus fazem cafetinagem com o holocausto, foi o que o seu Samuel me disse por final e se afastou e nem lembrou que eu lhe devia alguma grana, logo ele que, desconfiei a vida inteira, guardava o meu muiraquitã no caritó, mas eu sempre devo alguma coisa para as pessoas, devo agradecer ao Ruffato, pela indicação, e ao Cagiano, pela força, o fato de não ter ainda morrido sobre um prato frio de sopa, ao lado de uma gaiola para prender rato judeu, e ser examinado por uma policial que descobrirá meus segredos ao ler minhas anotações... ou será que isso tudo é uma questão de tempo? Li que não valho bastante como literato para ficar louco por excesso de talento. Escrevi uma novela curta, cheinha de pretextos, que não quiseram publicar. Escrevi um folhetim e repeliram-me. Levei-o a muitos diretores de jornais e em parte alguma o quiseram aceitar. Disseram que faltava sal no título. Que sal? Sol eu tenho certeza que falta, pois escrevo sempre escuro, não vejo luz alguma para brotar no que escrevo, ou será que eu sou todo escuridão?

... ou O Cadáver louco e a vaca morta (textos sem costura) ou Carta ao Zé Antunes ou, ainda, 19 princípios para a crítica literária ou Uílcon Pereira não mora mais aqui ou O cara que empurrou Ana C. do sétimo andar ou Logomaquia ou A longa carta ao Zé ou A caderneta vermelha de Antonio Kruger ou ...

                                                               tudo não é mesmo uma questão de tempo e está reservado pra cada um de nós seu próprio prato de sopa Campbels por uma eternidade de quinze minutos e uma genuína policial curiosa que meterá o bedelho em nossos escritos? Todo leitor é um policial curioso, todo leitor é voyeur e todo escritor é uma espécie de fotógrafo cego. Quer saber? Tô nem aí, sigo esperando a indesejada das gentes com cada coisa em seu lugar, a mesa posta, onde fodi Marlene outro dia; o campo arado, onde pensei plantações de raras fibras e perfumes, mas só pensei e não agi, a idéia também morreu no molambo da língua paralítica e eu acabei excitado lendo Manuel Bandeira e o Eclesiastes, isso me dá um tesão danado, não me segura que eu vou dar um troço. Uns, cocaína; outros, música baiana; pra mim, poesia, muita poesia e é por isso que ando lendo Augusto dos Anjos, logo eu, filho do carbono e do afrodisíaco, devorando versos de puro mau gosto, desafiando e desafinando o coro dos contentes...

M              E              R              D              A

mil vezes merda... tudo já foi escrito, tudo burilado, são tempos de control C control V e pastiche e colagens e samplers e lindos os poemas do Zé, depois escrevo pra ele e comento, talvez faça uma resenha que não será publicada, um crime que não será desvendado, um ensaio que não será lido, um beijo que não será dado, uma crônica que não será divulgada, um filho que não será parido, um conto mal resolvido, quebrado, a porra de uma bula de remédio contendo arsênico, cianureto e bactérias da saliva do dragão de Komodo, um emplastro para dores de consciência, um testamento deixando a maldição da poesia ao próximo vate vil e vão e voraz leitor de poesia, escreverei com sangue para ser dramático e banal, em bites para navegar na rede, em fumaça de cigarro e incenso para acordar Caio Fernando Abreu do seu sono precoce e febril, para arrancar suspiros do cravo tatuado de Hilda Hilst, desenharei um poema épico narrativo contando a  história reles e comezinha de nossas vidas, pois lindos são os poemas do Zé, farei um manifesto pra amaldiçoar os Dantas desse país brega e pedante, pois sofisticação por estas praias soa sempre como coisa indecifrável, criptograma, hermetismos para iniciados, língua morta de tribos exterminadas e sempre e sempre e sempre o nosso complexo de vira-latas. O Lourival também andou me enviando um material bacana, poesia que escreveu há tempos, nos 80. Não contem à polícia, leitores, mas foi ele, Louri, quem empurrou Ana C. da janela e depois, cheio de remorso, enforcou-se na vida de bancário e morreu de tédio no interior do Espírito Santo, exatamente como fiz depois de abrir o gás pra Torquato e derrubar o avião de Faustino. Dizem, não tenho certeza, que foi ele também que encheu o cu de cana com Leminsky, pouco antes do Paulo morrer de cirrose e deixar uma carta para Paco Cac e Zeca Magalhães, declarando amizade lírica eterna ao tricolor e ao vascaíno. Viva Torquato, Leminski, Ana C, Zeca Magalhães, Paco Cac, Lourival. De repente, parece que os poetas que não deram certo, mas que não se mataram, resolveram botar as armas pra fora. Eles me têm saído com algumas pérolas que o grande público nunca vai ler.

Cadê você, palavra?

Que se foda a massa ignara, passemos à bruxaria, berrava um poeta que não existe mais. Preciso dar mais atenção aos amigos, ando relapso, matando demônios que insistem em ressuscitar, ouvindo vozes, criando vozes, criando maus vezos. Por hora, concentro-me no texto e percebo então que

A vaca morreu, ele disse. Não acredito, respondeu o mais velho. Problema seu, já disse que a vaca morreu. Vi a carcaça no fim do barranco. Não posso fazer nada se você não acredita. O mais velho mordeu o lábio superior, maneira de conter o ódio. Ainda resmungou uma ameaça insossa. Há muito vêm se mordendo esses dois. O mais novo é o puro desmantelo, desleixo, deslize e desculpas. O mais velho, trabalho, labuta, esforço e disciplina. Azeite e água. Nunca se viu no mundo, diziam, dois irmãos tão diferentes. Era de se jurar que não saíram do mesmo bucho. O mais novo, farra e festa, bonito, bem apessoado, alto, falante, namorador que só ele. O mais velho, seriedade que se confunde com timidez, onanismo opaco. Nunca se sabe onde termina o sério e começa o tímido. Aquele, um principezinho empertigado, ousado, galinho garnizé ciscando em todos os terreiros. Este, encruado, um sapo, recolhido em pensamentos abissais. Ultimamente vivem às turras. Começaram com farpas, indiretas, ironias. Pequenos venenos que foram inoculados aqui e ali, contaminando o que já era podre: a relação daqueles dois. Uns dizem que foi por causa de mulher, chegando a jurar que o mais velho não se conforma em ter perdido fulana para o mais novo. Outros, que o verdadeiro motivo dessa disputa é a herança do velho Adão, que com seus setenta anos e safenas parece não durar mais que um São João. De concreto, só o bate-boca infernal. Antes, ainda se continham e era raro vê-los perder a compostura, principalmente o mais velho, que preferia calar-se diante dos achaques do irmão. Agora não. Tem-se a nítida impressão de ser ele, o mais velho, a iniciar os ataques, a dar faniquitos, como se finalmente estivesse cansado de ser o mais velho. Chega! A vaca morta foi apenas a gota d’água. Deveria tê-la recolhido ao curral, antes de ir à bodega, gritou ele. Como pôde? Ela já estava morta, retrucou o mais novo. Que culpa tenho eu, zebedeu, de ela ter caído na... na ...
Onde caiu a porra da vaca, meu Deus? É nisso que dá o atrevimento de escrever sobre o que eu não sei. Será que vaca cai em buraco e morre? Só se for um buracão do tamanho deste em que me meti e me morri e me lasquei todo, pois estancar assim, sem mais nem menos, é morte na certa. Não da vaca, que não existe ainda, mas do autor, este também uma espécie de vaca inexistente. Era uma vaca nova? Velha? Isso é fácil, a lógica e a experiência me dizem que uma vaca velha é, teoricamente, mais frágil numa queda, mas, por outro lado, essa mesma vaca velha de guerra não deve ser tão estúpida para cair em qualquer buraco. Isso é coisa de bicho novo, imaturo, que morre em qualquer buraco. Vejo os bichos por mim ou, melhor dizendo, interpreto a psicologia das vacas pela nossa psicologia, logo, uma vaquinha nova, tapadinha, sem experiência de vida, está mais fadada a quedas do que um animal experiente. Quantos de nós já não nos morremos por buracos outros onde mergulhamos desavisados? Ah, como os buracos nos fascinam quando novos e nos aterrorizam quando velhos! Mas se a morte da vaca é o estopim dessa briga, talvez seja interessante desenvolver melhor a simbologia desse fato, afinal de contas, num texto literário, cada coisa tem seu lugar, apenas aquela coisa pode estar naquele lugar. Se o autor diz que é uma vaca morta, necessariamente, só podia ser uma vaca, e morta. A vaca, animal sagrado; a queda, a morte. Tudo fatos de profundidade simbólica, polissemia, plurissignificância, vê, anta? A coisa deveria funcionar de forma velada, ocultando um conteúdo sacrificial latente: a vaca, oferenda dionisíaca; a separação de dois irmãos, a derrocada da fraternidade, a frátria condenada. Eis o trágico instalado. Meu Deus ! Como sou brilhante, como sou fodão!

VACA MORTE BODE TRÁGICO LOGOMAQUIA

Ficou fascinada com aquela carta enviada para ninguém e por isso mesmo sentiu que era endereçada a ela, Genuína, estudante de um curso noturno de Letras na periferia da capital. Sim, ela conseguia entender o que o finado estranho estava registrando naquela caderneta. Sentindo a vertigem, continuou:
A idéia de um caim-e-abel até que não é de todo má, embora repisada, matéria mastigada por inúmeros escritores nesta e noutras línguas. Mas toda a literatura não é apenas um jogo sobre um mesmo campo? Sempre estou retórico, como acentua o príncipe. Tudo gira em torno do mesmo. Nada há de novo na literatura, entretanto formam-se legiões e legiões de escrotinhos que se arrogam prerrogativas de vanguarda e beijam o cu dos senhores do campo literário, todos buscando a companhia das letras. Morte ao Dantas, meu irmão, e morte ao burguês de giolhos, ó gelatinas pasmas. Sei fazer manifestos engenhosos: Manefasto.
Morte às rainhas-mãozinhas-de-seda-provincianas-estrelas-alfa-virgens-cem-por-cento com corrimentos vaginais e que não crêem em Deus mas ajoelham-se diante de um pau de dólares e francos e verbas oficiais e põem em revista uma caterva de contemporâneos protegidos e fitas métricas para emoções literárias e balanças industriais para a obesidade ficcional e sistema de cotas para negros e gays e mulheres nas páginas da literatura e patrulham com mediocridade a arte dos não-medíocres.
Viva Lima Barreto e a virulência de se fazer literatura vertendo ódios acumulados sobre páginas que se quer literárias. Viva o fato de estar em cada palavra, inteiro e irado, oculto na mordida de cada adjetivo e cada frase-armadilha que se prepara para matar o alvo torpe que inferniza nossos dias. Peçonha é meu nome. Morte aos meninos e meninas e demônios. Morte aos purismos e novos estruturalismos mascarados da academia. Não sei escrever de outra forma, essa é minha dicção, minha voz. Vomito, logo existo. Sou retórico sim e fodam-se. Mas, neste caso específico, onde dois irmãos fazendeiros estão às turras, a minha burrice experencial rural inviabiliza qualquer possibilidade de narração. Como dar verossimilhança a uma história em que minha vaca não sabe onde, como e porque caiu? Meu realismo me diz

A vaca sou eu, meu leitor!

Lembro-me de uma crônica de Graciliano Ramos onde comenta a queda moral de um escritor provinciano que, no ardor da batalha literária, ao compor uma cena dramática, escreve que a mãe abraçou-se ao “cadáver louco do filho”. Tal deslize provoca a derrocada do literato que some na noite dos tempos. Arte literária, como diz o meu amigo Leonardo Almeida Filho, é o Lego da linguagem, há que se ter preocupação com o detalhe na e da escrita, com o encaixe das peças, com o colorido, com o domínio do tema, habilidade com a língua. Chupar com técnica o cuzinho da literatura e fazê-la gozar aos cântaros, meu amigo leitor, é o verdadeiro beijo grego. Isso está na Poética e na República. Sorver o mel da linguagem, na ponta da língua seus conectivos. Fazer literatura é, sim senhor, pagar um boquete à musa, e se o escritor não souber usar a língua, não conseguirá um orgasmo sequer, uma ilíada, um verso, um conto,
nonada.

Será que minha vaca morta não é o meu cadáver louco? Ou será o local indefinido de sua queda e morte o altar de minha imolação? O umbigo do meu pesadelo?
...que culpa tenho eu, Zebedeu, de ela ter caído na fossa? Que fossa? rebateu o mais velho...
E agora? Que fossa? Que fossa? Onde? Como era essa fossa? Bobok, bobok, bobok, ouço a sugerir lugares, sei que estão a me ajudar lá de onde-não-sei-onde-estão. Por que a vaca cairia numa fossa? Torno a morder-me o rabo, urobórico e redundante escritor de meia pataca. Pane. Estática. Silêncio. Parada no jardim de um caminho que se trifurca. Caos redivivo... por onde? E se alterasse o motivo da discussão de ambos? Começasse assim...

Ela preferiu ficar comigo, ele disse. Não acredito, respondeu o mais velho. Problema seu, já disse que sou eu quem ela quer. Não posso fazer nada se você não acredita. O mais velho mordeu o lábio superior, maneira de conter o ódio. Ainda resmungou uma ameaça insossa
...talvez seja o caminho para essa história. Brigam pelo amor de uma mulher. É melhor uma mulher que provoque a disputa entre dois irmãos, como gregos e troianos, do que uma vaca que sucumbe ao cair...onde? Onde mesmo? Bobok, bobok, bobok...de onde vêm as palavras quando as costuro no papel? De onde a história? Os personagens? Digamos que a mulher é o ponto de partida, mas para os tempos que grassam isso não vende um exemplar sequer. Talvez se descobrissem algo mais sério na fazenda. E se? Vejamos

A contagem estancara em sete, mas havia indícios concretos de pelo menos mais três corpos. Foram encontrados tecidos humanos e cabelos que não pertenciam aos sete corpos jovens descobertos no fundo do quintal. A cena, pavorosa, era prato cheio para os noticiários noturnos e para caçadores de história como eu. Mas o que mais importava nisso tudo, caro leitor, não era a morte de uma dezena de adolescentes, nem o fato de terem sido abusados sexualmente - como comprovariam depois os exames da perícia e dos legistas – ou mesmo os corpos dissecados com requinte de perversidade, olhos e dentes arrancados das vítimas ainda vivas, não. Não era isso o que realmente importava. O que era mesmo importante era a coceira que o assassino tinha entre os dedos dos pés. Isso mesmo: uma frieira, uma micose, uma bactéria qualquer que o fizera percorrer consultórios de dermatologistas de toda a cidade. Entre um assassinato e outro, confessou, era-lhe penoso despender uma fortuna em cremes anti-bactericidas que nunca funcionaram, além das caríssimas consultas pagas a profissionais incompetentes, protestou. Isso, declarou aos jornalistas, era um atraso de vida, um cidadão que paga seus impostos regularmente, que freqüenta a Igreja do bairro, que participa do Natal sem fome todos os anos, não conseguir um profissional decente para lhe curar uma patologia banal. Para delícia dos jornais, relatou que foi obrigado a suspender alguns esquartejamentos por conta da coceira incontrolável entre os dedos. Certa vez, ao arrancar o primeiro dente de um branquinho que peguei na rodoviária, não resisti à coceirinha e tive que parar a brincadeira, deixando-o, por alguns minutos, berrar, chorar, pedindo papai, mamãe, implorando socorro. Reconheceu que era uma coceirinha boa, gostosa, persistente, mas era inadmissível estancar a dissecação de um fígado ou de um bíceps por conta de uma coceira. Ás vezes me ocorria uma inspiração, um poema, um verso, um fragmento de verso, e eu parava o trabalho e escrevia coisas assim: ... passei grande parte da minha juventude querendo ser velho, labutando, desacreditando, desvivendo. a televisão por testemunha, a mão direita como vagina ou cu, a cada dia um corpo novo na orgia virtual de minha jovemtude. fui um velho, sempre, nunca querendo botar meu bloco na rua, apenas estando, já que nunca realmente fui. quando me propuseram matar o fulano, não titubeei, aceitei o trabalho. a vida , na verdade, não tem lá muita importância, nunca teve, e matar um ou outro era como escolher um Fusca ou um Corcel amarelo, igual ao que eu tinha quando aceitei o serviço.  No caminho para o trabalho, ouvi no rádio um cara cantar que hoje está passando um filme de terror. hoje em dia esse povo gosta de falar o que é sem que pareça que estão falando o que é, cada uma. sou povo, mas não sou burro, porra. apesar de ser povão, sou inteligente, sei que o que ele canta, cada letrinha. isso não vem ao caso, me pagam pra trabalhar, ganho para apagar um cara que não sei o nome, só tenho foto e a informação de que ele vai estar na Colombo hoje a tarde. não me interessa saber quem é o fulano, pela foto parece ser advogado ou funcionário público, tem uma lapa de bigode que despenca o beiço de cima e dá a ele um ar de maus bofes. já não gostei da cara do finado – sim, porque ele podia se considerar finado, eu não falho – e é bom assim quando a gente não tem simpatia com o relatório, pois fica mais fácil mandar pras picas...Mas nesse caso, justifica-se o sacrifício, pois a arte está acima de qualquer prazer, não é mesmo? Estou escrevendo um romance que trata de dois irmãos em batalha. Começa assim: “A vaca morreu, ele disse. Não acredito, respondeu o mais velho. Problema seu, já disse que a vaca morreu. Vi a carcaça no fim do barranco. Não posso fazer nada se você não acredita. O mais velho mordeu o lábio superior, maneira de conter o ódio. Ainda resmungou uma ameaça insossa. Há muito vêm se mordendo esses dois.” Ainda estou escrevendo, pesquisando sobre fazendas, sabe? Quando me meto numa coisa, quero fazê-la perfeitamente e por isso estudo, pesquiso, analiso. Como você acha que eu disseco meus meninos tão bem? Do mesmo modo que pretendo escrever tão bem: com estudo, muito estudo. Mato esses meninos para acalmar meu demônio. Escrevo pra fazer a mesma coisa, matar malditos demônios e dissecar almas. Bom, muito bom, acho que vou ficar rico. Vou escrever ao Zé, comentando seus últimos textos sobre Uílcon.
Caro Zé. Alguns comentários sobre o que tenho lido por obra e graça de tua parte. Antes devo apenas dizer que ainda não sei de Uilcon Pereira, pois sabê-lo-ia nos textos do autor e não os li ainda, com exceção do pequeno conto no escuro (uma pérola, doce e úmida, de frescor risível, de riso saudável e pecaminoso, de rir com ele e a partir dele). Como encontraria um exemplar de qualquer dos livros dele? Pelo que li, a partir de teus textos UP1 e UP2, publicados em homenagem ao autor, devo dizer que me senti abestalhado. Como não ouvi falar de um cara como ele? E pior: Como ele pode ser tão eu? Ou como eu posso ser tão ele? Não me entenda mal, de maneira alguma me comparo à qualidade do finado poeta, até porque não o li ainda, mas acredito no que tenho lido sobre ele, tanto nos teus dois textículos (não ria), como no texto do Jorge Pieiro. Tenho um romance, guardado há anos, sobre o qual trabalho arduamente, a conta-gotas, e cuja proposta vai ao encontro da estética uilconiana (existe isso?). A coisa do fragmento, da chupação, da felação literária, do sampler narrativo. É um romance onde não há fronteiras entre o que é meu, o que é do outro, o que é de ninguém. Carnavalização transcendental, ou o que quer que isso signifique, mas que quero que signifique justamente radicalizar as experiências de Lautréamont nos Cantos de Maldoror (nada se cria, tudo se sampleia), a minha Geléia Geral torquatiana em um texto de fôlego. Nesse romance, cujo corpo envolve tudo o que a literatura tenta abranger enquanto tema (ambicioso, não?), as personagens têm nomes próprios de autores e personagens comuns na literatura universal. Dessa forma, o meu herói chama-se Luis da Silva (o angustiado assassino do velho Graça), é um escritor neurótico (pleonasmo), obcecado (pleonasmo), apaixonado (pleonasmo), tarado e pervertido (duplamente pleonasmo), que narra sua vidazinha estúpida numa cidade qualquer durante o feriado de Carnaval. A história não se passa em 16 de junho (seria óbvio demais), mas compreende a data máxima dos trópicos afro-lusitanos, e não é por acaso que o personagem seguirá a procissão báquica pelas ruas, ridículo, ausente, torturado, um Penteu sem nobreza ou sacrifício. Seus delírios incluem sons, cheiros, suores. Bobok, Bobok, Bobok, ele ouve pelo apartamento, durante o carnaval, o samba-enredo do inferno.  O romance

O Grande Autor

eu o concluí (será que concluí mesmo, Zé?) em 1996, ano da morte do Uilcon e , como místico de araque, que não crê em acaso (um lance de dados jamais abolirá o descaso também), vejo nisso tudo um bom sinal: Uílcon é um grande personagem, Zé (sim, pois Uilcon Pereira para mim que não o vi, não o li, não o ouvi, é um personagem, e dos mais ricos dos que tenho tido ciência; incrível ter existido alguém como ele, Zé, não sei explicar, o finado é minha alma-gêmea! Ontem li esse texto do Leonardo, aquele cara de Brasília, também minha alma-gêmea, saca só a vertigem:

“19 princípios para a crítica literária

Jamé, meu caro, pode tirar seu cavalinho da chuva, viu? Eu é que não vou mais botar comida no teu prato, cansei, Ela disse tudo isso cuspindo a farofinha com calabresa, sem se incomodar com os olhares ao redor. Ele, constrangido, derramava os olhos sobre a rabada que enfeitava o prato diante de si. Pensa que to ligando pro teu caso com a Bel? È, meu caro, você acha que eu não to ligada nisso? Pois saiba que de besta só tenho as caspas, sou muito é esperta. Sei da Bel, he he, que tu anda comendo a vaca na própria cama do casal, cá pra nós uma camazinha muito xinfrin que aquela vaca comprou em Goiânia e fica se gabando de ser móvel refinado, sei, refinada é a buceta dela. Pobre Genival, nem sonha que tu anda ciscando no galinheiro dele. Mas ele, o Genival, é corno sem saber; eu nao, eu sei, eu sei viu seu moço? E apontava o garfo para ele no ritmo de eu-sei-eu-sei-viu-seu-moço, como uma maestrina experiente em cuja batuta dentada de metal estava espetada uma rodela de palmito fresco e desenhava a canção do adultério. Ele foi pego de surpresa, não conseguia reagir, Como essa puta foi descobrir isso tudo? E olhava com ódio para a boca frenética da criatura histérica que tinha em sua frente. E tem mais, viu, seu moço? Que mania ela tem de chamar “seu moço” quando está puta da vida. Essa é ela. A Bel sabe que eu sei e já andou me implorando para não falar com o Genival. Ela sabe muito bem que o marido dela é pros cocos e se uma revelação dessas cai nos ouvidos do corno... bye bye tu e ela. Eu disse que ela podia ficar tranqüila, eu não sou criatura de entregar ninguém. Só que eu cansei, meu caro, tua batata queimou comigo. E não foi por causa da Bel não, foi por causa da Germana, seu filho de uma puta. Porra, cara, minha irmã? Até a minha irmã? Tu não presta mesmo. Que que ta olhando dona? Nunca viu briga de casal não? Vai dizer que teu marido é santo? Esse coroa aí não tem cara de flor que se cheire não. Larga mão de ser curiosa, vire-se pra frente, viu? Cuida de teu galinheiro, que do meu cuido eu, e deixa de ser enxerida. O casal de idosos apressou-se em afastar-se daquela louca, sussurraram. E você, seu moço, não perdoou nem minha irmã? Engoliu um pedaço mal mastigado de carne quase crua e, junto com a carne, um princípio de choro que ela dominou. Engoliu com ódio, lubrificante para gargantas recalcadas. Minha irmã...minha irmã...até a minha irmã, seu escroto? Ele, sem jeito, em completo embasbacado silêncio, desviando-se do olhar das pessoas no restaurante, sem nada para defender-se das acusações. Nenhum atenuante. Era mesmo um safado, não dominava o tesão, era um Serafim Pinto Grande, precisava cortar a mandioca que Deus lhe deu se quisesse sossego. A cunhada era uma galinha, insinuou-se, infernizou-o por algum tempo, ele até que tentou esquivar-se mas, porra, sou macho, não dá pra fugir de uma buceta que implora ser comida, não dá, não dá, tentei mas não dá mesmo. A Bel não, ele a cantou. Sabia que Genival não estava com essa bola toda, que andava deixando a mulher na mão. A gente nota quando a mulher ta carente, quando falta pica em casa, e a Bel ostentava essa carência no olhar, no andar, no jeito de tremer o dedinho do pé quando saía da piscina - e ele sabia muito bem identificar esses indícios de carência de rola. Entre um vinho e outro, em tardes agradáveis, acabou rolando. Fazer o quê? Sou culpado sim, não posso negar. Mas tudo isso ele pensou, só pensou, olhando para o fundo do prato, enquanto aquela Erínea atiçava-o com o garfo-arpão.“
Tem mais, mas estou com uma preguiça-macunaíma de transcrever, queria mesmo era brincar, brincar, brincar. Se der, te envio depois, ok? Li teu sonho, pois tu também és (e completamente és) Fausto (estou errado?), concordo quando dizes que o longo poema (que me lembrou demais os textos longos de Ferlinghetti -Coney Island in Mind - e mesmo do velho Ginsberg de Uivo, tens o teu pezinho nos beats ripongas, todos temos e por isso rimos de tudo e estamos cientes da merda que se passa) é  na realidade um ensaio em versos sobre a recepção do Fausto de Goethe pela história literária. Uma pena eu não ter lido o trabalho do irmão Campos sobre o texto, senão poderia tecer algum comentário sobre o que tu dizes tratar-se de uma chupação do concretista. Só posso dizer que andas chupando o cara certo (sem nenhuma alusao pornográfica, e acho que esse meu adendo é mesmo desnecessário). Tenho alguns data vênia a respeito do assunto, ando lendo algumas coisinhas para a elaboração do meu Fausto (O Pequeno Fausto), e vejo a coisa por um ângulo distinto. Acho sinceramente que o Fausto de Goethe vem, como não poderia ser de outra forma, enaltecer a raça humana e sua importância extrema em tudo (?????), penso diferente, somos importantes sim, mas justamente por sermos desimportantes (Voilá Manoel de Barros), somos sim o sal da terra por voarmos fora da asa, por sermos zero, finitos, nada. Quando vejo acordos demoníacos sacramentados em função da perda das almas, eu rio, não valemos tanto a pena, demônio algum que se preze, gastaria tempo e luz com uma raçazinha tão estúpida e fadada ao auto-extermínio como nós. Talvez eu não devesse estar dizendo isso, talvez eu nem devesse dizer nada, e simplesmente ficar calado esperando o bater de asas de Mephisto (sim, porque o meu Mephisto tem asas), sobre minha cabeça, perguntando como quem não quer nada: E aí? Mais algum poema, mano? E eu respondo que estou escrevendo uma história de dois irmãos em luta e que acabei atribuindo a um assassino serial e que a coisa é mais complicada do que eu posso imaginar.
Bobok! Bobok! Bobok!
não ouve, anta?
Estão gritando lá dentro de onde nem sei e por isso escrevo...e a vaca, onde caiu? Quem os jovens assassinados? Quem os matou? Quem sou eu? Afinal de contas, o que é isto aqui? Genuína, onde realmente você se encaixa nisso tudo? Quem lê e quem escreve esta disputa de palavras?
Zé, estou meio frouxo de argumentos nesta logomaquia, é a fome, a gente se fala. Um abraço.
Tem mais não.

  

Esta é uma obra de ficção, por isso verdadeira.

 Agradeço a todos os escritores que, com suas vidas, obras e mortes, me ajudaram a compor este painel, este manifesto, manefasto, palavreado inútil, paranóico, por isso livre, especialmente a Dostoievski, pelo mote genial das vozes, e a Graciliano Ramos, por ser farol, guia.

Evoé, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Augusto dos Anjos, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Mário Faustino, Torquato Neto, Samuel Rawet, Ana Cristina César, Paulo Leminski, Uílcon Pereira, Hilda Hilst, Caio Fernando Abreu, Manuel de Barros, Raduan Nassar, Luiz Ruffato, Ronaldo Cagiano, Paco Cac, Zeca Magalhães, Zé Antunes e todos aqueles que perdem seu tempo com essa coisa inútil chamada literatura.



Esta plaquete, com tiragem de 200 exemplares, foi impressa pela Gráfica   , em papel reciclado industrial.

Edição do Autor
Brasília, maio de 2007


e-mail do autor: leo.almeidafilho@gmail.com


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