terça-feira, outubro 03, 2006

Os jilófagos


...a marca, pai, a mancha, o labéu, o estigma, o vestígio, o sinal, pai, o sinal. Do que você está falando? Que mancha? Que sinal? A maldição caiu sobre teu filho, pai, maculou o teu fruto, marcou tua descendência, meu pai. Está delirando, filho? E ele, fora de compasso e harmonia, em perfeita dissonância, como se o mundo estivesse caindo sobre uma taça de cristal, gaguejava e sorria amarelo, aquele amarelo sem jeito de amarelo, cor de quem se pega diante de seu maior pesadelo. Tenho a mancha, meu pai, a mancha, a praga, a peste, a desgraça, meu Deus, meu pai, a desgraça caiu sobre tua casa, sobre teu varão. Soluçando. E o pai, estupefato, percebendo aos poucos o que o filho queria dizer, mas negando-se a acreditar, desconversava. Filho, você anda estressado, pare com isso. Não entendo o que você fala, meu filho, que mancha? Perguntava já sabendo - e não querendo ouvir - a resposta. O medo estampado na cara enferrujada do velho. Uma conversa que morreu por aí, sem conclusão, mas muitas suspeitas e feridas pulsando em ambos, pai e filho: a jilofagia.
É certo que em certas culturas o desejo de consumir jiló é plenamente aceitável, chegando mesmo a ser incentivado durante determinados períodos da história. Os clássicos são notórios jilófagos, por exemplo, mas agora, nestes tempos de alta civilização, impossível! Gostar de jiló é decididamente uma aberração, um mau costume, desprezível hábito, uma doença, degeneração do indivíduo, falha de caráter, e é por isso que o filho tremia ao tentar contar para o pai sobre sua fome, sua vontade de comer jiló, coisa que vinha fazendo às escondidas, coração na boca, tremores e suores, respiração apressada, o talhe no fruto, a mordida, o líquido a escorrer güela a dentro, o jiló devorado com requinte, prazer, pecado e medo, muito medo, pavor, terror absoluto. Imagina se o filho do delegado Tavares ia suportar a pressão? E o próprio delegado Tavares? Como ficaria nessa história toda? Logo ele, o grande caçador de jilófagos, o grande muro moral contra o avanço dessas criaturas de maus hábitos alimentares, nem pensar. Balançava a cabeça grisalha, nem pensar, meu filho um queimador de jiló? Um guisador de jiló? Um flambador de jiló? Ai, meu Deus, onde errei? Onde erramos, Mota? Onde erramos, meu amor? É a mancha, o sinal, o labéu dos desgraçados.
Os Jilófagos, em nossa sociedade, durante tempos, foram tratados como doentes e, apesar de certos avanços na interpretação desse comportamento, ainda são considerados cidadãos de segunda categoria, excrescências, sem direitos, cem deveres. Ganham apelidos jocosos, humilhantes, ora são chamados de “machões”, ora “espadas”. Se queres pisar na garganta de um jilófago, chama-o de “comedor” e verás essa anomalia se encolher em sua própria maldição. Andam por isso em bandos, em guetos, com a marca evidente de sua preferência. É uma forma de se protegerem, de sobreviverem a esses tempos absurdos de caça aos jilófagos. O horrível hábito de se alimentarem dessa fruta amarga é questionado por todos, principalmente por Deus, via sacerdotes, pastores e rabinos, pais, professores e policiais. Comer jiló? Que desgraça! No livro sagrado está escrito “Não comerás da fruta amarga” e no versículo 24 “E o Senhor apareceu em sonho a Jessé, companheiro carnal de Malaquias, e determinou ao abençoado casal viril que não se comesse do fruto verde e amargo”. A campanha de erradicação de jilófagos já foi muito maior e poderosa, mas parece que atualmente, em função de certa liberalização nos hábitos gastronômicos, dos avanços significativos na hermenêutica sagrada e, principalmente, pela presença cada vez mais marcante de jilófagos enrustidos sob a pele de celebridades do cinema, da música popular e da política, esses “anormais” começam a se sentir mais aceitos. Devo destacar que este não é lá um bom termo, talvez fosse melhor dizer, tolerados. Quando nos dizem que é preciso mais tolerância com esses doentes eu penso em quantos morreram de porrada por aí, mastigando um último jiló quando surpreendidos no ato. Lembro de quantos devem ter chorado a perda de jilós que se lhes retiraram à força, apesar de todo amor que sentiam pelo fruto. Lamento a legião de jilófagos que passaram suas vidas comendo escondido o fruto que nasce em todo e qualquer quintal, no quintal do papa, do presidente, do pastor, do rabino, do delegado Tavares, meu Deus, meu filho, meu filho, o sinal, a mancha, a marca. Que vergonha! Como vou encarar os amigos? Meus companheiros? A confraria da sauna? Os rapazes da delegacia? A turma das peladas no clube? Como vou dizer isso ao Mota? Meu Deus, o Mota, não vai resistir à revelação da jilofagia de nosso filho. Ele não anda bem, coração rateando, me deixando preocupado. Nem pensar em dizer a ele que nosso filho é um comedor de jiló. Onde erramos, meu bom Deus?