sexta-feira, julho 02, 2010

A flor do cão

Quando pequeno, curvado por tanto sonho, me disseram que aquela flor vermelha no cerrado era a “flor do cão”. Não me ocorre agora quem me a batizou naqueles tempos. Pode ser que tenha sido meu pai, um amigo dele, um colega de escola, não lembro agora. Mas de uma coisa nunca me esqueci, aquela era a “flor do cão”. Para quem a conhece, é flor de um vermelho agressivo, quase vivo, e que salpica o verde e cinza do cerrado com pontinhos escarlates, peludos. Sim, é uma flor peluda, minúsculos filamentos rubros que se expandem numa explosão de cor e volúpia. No menino que ouviu esse nome, ficou guardada a imagem de flor do Diabo, do Demo, não flor canina. As caminhadas para a escola, feitas numa trilha no meio do mato, eram testemunhadas por algumas dessas flores, que também me viam correr, ao fim da tarde, para assistir ao Batman na TV Tupi. Era 1968. Quantas vezes me peguei perguntando o porquê de “flor do cão”. Será que o inferno era assim vermelho? Mas se fosse, seria tão bonito o reino do capeta, eu cria, e ao mesmo tempo mergulhava num dilema que envolvia a idéia de não poder haver beleza no cão, nem em seu reino. Naquela época eu ainda temia papai do céu e as artimanhas do capiroto e era inadmissível haver coisa boa em Lúcifer. Então , menino bobo, me perguntava: Por que flor do cão? O menino que fui guardou a imagem e o nome. Hoje, caminhando, deparei-me com alguns exemplares dessas flores do cerrado e, por instantes, vi-me um menino velho, curvado menos por sonhos que por reumatismo, e me ajoelhei para flagrar-lhe a face rubra no meio do mato. Acho que tinha muito de resgate de um Léo que não volta mais, que perdeu-se naquelas trilhas do cerrado, cercado por flores do cão, em disparada para ver o homem-morcego derrotar pingüins e charadas. Sei que esse ponto vermelho no cerrado tem um nome, dizem–no Caliandra, nome sem graça, sem mito, sem fantasia. Ao adentrar cuidadosamente o mato, com medo de cobra e escorpião, e me apoiar num galho seco para registrar a flor, senti-me como o narrador do Aleph, ridículo e decidido, acomodando-me na melhor posição para ver, naquela flor peluda e vermelha, uma vida inteira. Sim, era essa a sensação que tinha ao fotografar a flor: estava lembrando de mim, menino morto e esquecido, abandonado lá atrás, de olhar perdido numa guirlanda fúnebre de flores do cão.

Sobre felicidade e miséria


Recebi de uma grande amiga uma mensagem que dizia: Ele começa o dia com um sorriso. E você? A mensagem trazia uma sequência de fotos com um lindo garoto branco, de sorriso branco, num local limpíssimo, e sorriso estampado. O Detalhe trágico da foto era que lhe faltavam as pernas. O menino caucasiano de sorriso meigo aparecia exibindo suas próteses e se divertindo, dentro de sua limitação, com esportes telúricos e aquáticos. Ora, é evidente que essa minha amiga queria me dizer algo como: Não seja mal-humorado, pois você tem tudo e alguns que não têm nada são tão mais receptivos. OU, pior ainda, talvez quisesse me dizer: Não reclame da vida, tem gente em muito pior estado do que o seu. E aí me vêm duas perguntas: Que estado é o meu? E o que eu ando fazendo para merecer a culpa de não querer começar o dia sorrindo? Peguei-me a pensar nisso e cheguei a algumas crenças fundamentais que vão pautar a minha vida:
1. Eu não sou obrigado a ser feliz. Não sou obrigado a procurar a felicidade. Não sou obrigado a ser sempre meigo e doce com quem quer que seja. Felicidade é invenção da literatura burguesa. Além do amor, os escritores e artistas burgueses, inventaram esse negócio de ser feliz e sorrir toda manhã. Schopenhauer, e muito antes dele, Sidharta e todos os budistas, já tinham desconfiado de que essa tentativa esquisita de ser feliz a qualquer preço é o princípio trágico da infelicidade. Ora, se gasto meu tempo tentando ser feliz e – cá pra nós – são raros os momentos de felicidade, é óbvio que na maior parte do tempo estarei frustrado e... triste. Portanto, não me submeto a ser feliz para agradar ninguém.
2. Porque o fato de um pobre sem pernas sorrir pelas manhãs deve servir de paradigma para toda a raça humana e fonte de obrigação? Ora, se o garoto-toco sorri nas fotos ( que nem sei se realmente é sintoma de felicidade) é porque ele tem seus motivos que não são os meus. Ora, se a nova prótese lhe causa menos dor, isso é sim um motivo para que ele sorria, né mesmo? O fato de ser um garoto-toco, por outro lado, não é condição primeira para ser triste. Claro que não. Ser triste também não é obrigação de ninguém.
3. Mensagens desse tipo sempre trazem como princípio lógico – ou que se quer lógica – o fato de que a miséria do mundo é sempre maior do que a minha e, portanto, eu devo agradecer aos céus por ser menos miserável. Ora, que desgraceira é essa? Se milhões morrem na Etiópia eu devo ficar feliz por ter comida em minha mesa? Se o garoto-toco é um toquinho caucasiano, eu devo regozijar-me por ter, intactos, meus cambitos? Claro que não, lamento muito a ausência de pernas nos homens-toco do mundo. A miséria de qualquer um no mundo me diminui. Sei que não resolverei nunca os problemas do mundo, até porque a única coisa de que disponho é a minha literatura pobre, tosca, mas nem isso me dá o direito de achar que estou confortável porque tenho pernas e comidas, coisas que outros não têm.
4. Ser feliz é uma invenção do diabo para nos provocar a gula, a ambição, a guerra. Ser triste, por sua vez, é coisa de um Deus que nos quer temerosos do fim do mundo e passemos a encher igrejas para garantirmos a felicidade...no céu.