terça-feira, agosto 28, 2018

Os Anjos










This he said to me
"The greatest thing you'll ever learn
Is just to love and be loved in return"
Eden Ahbez

Para Lincoln



A poeira provocada pela passagem do carro que carrega os exterminadores já pousou sobre as coisas vivas e mortas. O ermo é paisagem, quase miragem. Nada além de um chiado leve, gemido, indicando a presença do sofrimento onde parecia nada haver. Visagem. Assim, devagar, bem devagar. Primeiro uma gota, escura, amarga, exalando um cheiro horrível de podridão e dor, caindo para... de, não importa mais. Sem barulho algum além do da respiração ofegante e agoniada, no compasso da desgraça e do desespero que parecem se findar na marcação do metrônomo da tragédia. Gotas várias de um sangue muito negro e fétido escorrem pela terra, vermelha terra do cerrado, mergulham nas raízes da sibipiruna, alimentando a matriz exposta do capim seco prestes a arder-se em chamas... Longe, a escuridão pesada do abandono e da ausência de carinho. Só dor, profunda dor que preenche cada espaço do pensamento que tende a não mais pensar. Não é possível mais sentir onde não dói, onde não sangra, onde não fede, onde não escapa a seiva vital. Tudo massa disforme e pútrida, ainda movendo-se sobre e sob a respiração que parece desaparecer, assim, devagar, bem devagar. Envoltos em fita crepe, sob carne macerada que expõe ossos partidos, tutanos, artérias e tendões e alguns dentes arrancados, há sonhos que nunca se realizarão e outros que, realizados, se perderão na decomposição da matéria e repousarão, carbono e fósforo e potássio e cálcio, na frialdade inorgânica da terra; prazeres que nunca serão gratificados, gozos que não serão gozados, sêmen que apodrecerá na origem; medos que não terão mais razão de existir, pois a escuridão adentrou definitivamente o espírito; leituras que se perderão sob a o último lampejo neuronal e que levarão consigo, para lugares insuspeitados, os machados e clarices e rosas e pessoas e dantes e goethes e augustos e; sorrisos e lembranças e resquícios de outros corpos que não mais existirão ali, ali naquele monturo, naquela coisa, naquele traste, naquele treco, naquele troço, naquilo que já foi ha pouco um homem e que agora poreja, goteja um líquido escuro e de odor insuportável. Aquele pacote envolto em fita crepe, assim imobilizado para o exercício da pancada e para a delícia do mais profundo e escuro prazer bestial, com pêlos saindo pelas frestas manchadas de sangue e pedaços marcados de carne, foi um dia o amante que fodeu e foi fodido, que gozou e foi gozado, que deu prazer e recebeu prazer; o amigo que abraçou e que beijou e que chorou a ausência e que perdeu o sono e que sentiu sede e que chorou em Cinema Paradiso e sorriu em Morte em Veneza e que xingou o guarda de trânsito e que lamentou a perda de cabelos e o ganho de peso e que telefonou de madrugada se desculpando por ter esquecido o teu aniversário e que detestava comer fígado mas adorava carne moída com batatinha e ervilhas e que nutria o mais íntimo desejo oculto de fazer sexo grupal e que se preocupava com o fato de estar chegando aos trinta sem ter adquirido uma casa e que ultimamente andava insone por causa de; aquele objeto encolhido ao pé da árvore seca do cerrado continha o cidadão que reclamou na fila do banco e que votou para eleger o presidente da república. Aquela escultura de carne triturada, argamassa de tecido e sangue, um dia foi o sorriso que encantou mulheres e homens, o menino que soprou as cinco velas de um aniversário que, ocorrido há vinte e três anos, não mais existirá, a não ser nas fotografias guardadas na lembrança de um vulto feliz de mulher; foi o estudante que declamou poemas de Florbela Espanca...espanca. Ontem ainda acreditava num futuro. Mesmo quando, colhido pela inexorabilidade da peçonha e da traição, encarou a figura da morte e da crueldade, ainda havia dentro dele, pequenina, a esperança de que se lembraria daquilo um dia com pavor, mas vivo e pleno. Quem algum dia saberá realmente? Agora, parece não haver mais movimento no meio daquele espetáculo de sangue e fita crepe. É o último dos instantes, o ínfimo, o limiar. Tudo o que é efêmero é somente preexistência; O humano-térreo-insuficiente aqui é essência; O transcendente-indefínível é fato aqui; O feminil-imperecível nos ala a si. Só pequenos répteis e insetos presenciaram o momento em que, após Murdad, cortando o fio primordial que nos faz ser, separar com as mãos de éter e mistério o corpo da alma, Azrael, o imenso anjo de quatro mil asas e bilhões de olhos e línguas, desceu do não-onde-e-sempre trazendo a indesejada das gentes. Agora, apenas o vento seco do cerrado envolvendo o corpo sem vida do rapaz, assim, devagar, muito devagar.