terça-feira, junho 03, 2008

A fala que cala





Quando a ciência cala, a arte fala. Sejam bem-vindas as frases feitas. Quero falar de sujeito e arte. Não do sujeito criador, não do artista, mas do consumidor do trabalho artístico, do mero expectador do fenômeno. Estou falando de mim neste momento. Estive na exposição do artista plástico paulista Nuno Ramos, que o CCBB oferece em Brasília neste mês de maio de 2008. O que me atraiu à exposição foi uma reportagem sobre a instalação intitulada “Monólogo para um cachorro morto” e a proposta de junção de literatura e artes plásticas. Nas minhas idas para Valparaíso de Goiás, o que mais observo pelo acostamento da movimentada via é a presença trágica de cães mortos. Já tive a oportunidade de contar quatro desses mamíferos num mesmo dia. Sempre me tocou bestamente aqueles corpos inertes, de pelagens sujas, alguns inchados, outros ainda frescos, sobre poças de sangue e esquecimento. Cheguei a pensar na origem, na ausência, alguém certamente daria por sua falta, choraria uma criança em algum lugar da cidade pela falta daquela massa de carne, pêlos e ossos esmagada na beira da estrada? Na velocidade diária a gente acaba nem ligando mais pra esse “fenômeno” de cães atropelados diariamente. Num tempo em que, além de cães, tenho observado motoqueiros estatelados no mesmo trajeto, numa freqüência assustadora de acidentes, a insensibilidade adquirida diante dos cachorros mortos vai, com certeza, transferir-se para motoqueiros acidentados. E aí, quando isso acontecer, se é que já não está acontecendo com alguns, pois cada um tem seu tempo, o que será de nós? Estava nesses pensamentos malucos quando li a matéria sobre a exposição do Nuno Ramos. Decidido a conferir a exposição, cheguei ao CCBB numa tarde de puro ócio. A primeira instalação que visitei, intitulada “Bandeira branca”, provocou-me estranheza profunda. É curioso como a arte contemporânea sempre nos inspira um lado lobateano de julgá-la mistificação, de botar tudo no mesmo saco de gatos. O que meus olhos tentaram ler foi uma montagem de grandes túmulos (era o que parecia) de granito negro, alguns monólitos eretos, e auto-falantes incrustrados em armações de metal, revelavam uma frieza tremenda. Esse cenário de pesadelo era agraciado com a presença viva de alguns urubus, que sonolentos descansavam sobre os monolitos. Ainda busquei girassóis na instalação na esperança de conferir um diálogo com “Tropicália”, de Caetano Emanuel, não vi. Acrescente-se a isso tudo a voz rouca de Arnaldo Antunes cantando “Bandeira branca”, duas vozes femininas cantando “Carcará” e outra canção que, infelizmente, não me lembro agora. Pronto: cenário mais onírico, impossível. É certo que o desconforto e a estranheza foram elementos desencadeados pelo inusitado da obra, e essa sensação de estar num pequeno pesadelo foi inevitável. Este foi o cartão de visita da exposição e a surpresa me atiçou ainda mais a curiosidade com relação às demais instalações. Adentrei a sala onde estava o tal “Monólogo” e minha primeira impressão foi de vazio. Uma sala enorme, no centro algumas placas de mármore branco (insinuando lápides), aos pares, presas por barras de ferro niquelado e parafusos, de tal forma que o pequeno espaço entre elas dificultava (para não dizer que impossibilitava) a leitura de um texto gravado na parte interna de uma das placas em pares: era o tal monólogo de autoria do próprio Nuno. A seqüência de placas de mármore findava numa abertura onde uma pequena tela de vídeo apresentava um filme, colorido, cuja cena era o corpo de um cachorro morto às margens de uma estrada. O vídeo mostra o artista compondo a cena trágica. Desce do seu carro com um aparelho de som e uma placa de mármore branco, dirige-se ao corpo do cão, delicadamente deita sobre o chão a peça de mármore e sobre ela o aparelho de som. Há cautela e cuidado nos seus gestos, respeito pelo defunto cão anônimo. No momento em que, no vídeo, o artista liga o som começamos a ouvir o tal “Monólogo para um cachorro morto”. Imagem, palavra, poesia, concreto, mármore, visão parcial, som...os sentidos todos ligados sobre o corpo sem vida do cão. Quem está morto? Pergunto ao final do texto e do vídeo. Se o artista se pergunta no “Monólogo”, quem é? Eu completo: Quem somos? A instalação acaba se tornando uma grande exposição de nossas mortes. Lembrou-me uma seqüência de fotos que recebi recentemente, por email, onde um cão protege o corpo de seu amigo cão atropelado. Por associação, remeteu-me à morte do replicante interpretado por Rutger Hauer, em “Blade Runner”: quem é mais humano nisso tudo? A instalação, que aparentemente se mostra dramática, mesmo na frieza do mármore, tem um quê de trágico e somos nós, no fim das contas, que estamos mortos, ou em vias de.



A outra instalação, presente na mesma mostra, é uma pequena brincadeira tragicômica sobre o mesmo tema: “Soap opera” nos remete à novelização (subproduto direto da carnavalização bakthiniana) de nossas vidas, muito além da palavra; de nossos roteiros de vida ou, para ser mais claro, do tratamento superficial e humorístico de dramas mais profundos. Temos mesmo a tendência de nos proteger sorrindo do perigo. Somos todos um mecanismo de defesa em permanente vigília. Ao associar a morte dos cães ao processo de feitura de sabão, e dentro dessas peças de sabão a inclusão de auto-falantes com cantores eruditos cantando canções populares, o Nuno acaba me fazendo pensar, por exemplo, naquele sujeito que ouve a terrível notícia de mortos e doentes de Aids na África e que, durante a notícia, chora, lamenta, resmunga, pragueja e verdadeiramente se comove com a desgraça de um seu igual, mas logo a seguir esquece tudo e continua distante da Aids, da morte, da doença, da África, e, o que é pior, de todo o sentimento de revolta que até então trazia estampado. De novo, o nosso lento processo de robotização e frieza diante do mundo. Juro que “Soap opera” só me fez pensar em Manuel Bandeira e seu “Pneumotórax”, ora, se tudo realmente está perdido, o melhor a fazer é tocar um tango argentino.




Bem que deveria ter tocado um tango naquela exposição, mas na sua ausência, estava presente “Juízo Final”, de Nelson Cavaquinho, no vídeo “Luz Negra”, exposto no subsolo do CCBB. Tudo é já performance e arte, desde o fato de descer as escadas em queda ao antro de Trofônio da exposição do vídeo, até a escuridão e frieza do local. Não havia visitantes além de mim e por isso peguei uma cadeira e sentei-me diante do telão, confortavelmente instalado para, ainda só, saborear o vídeo. A primeira coisa que vemos/ouvimos é a luz e o céu azul sob a trilha sonora em ruídos de “Vidas secas”, de Nelson Pereira dos Santos. Um campo vazio, terra arada sem plantas, e alguns buracos cuidadosamente cavados, profundos. Logo, como coveiros de um sonho, personagens de algum vídeoclip experimental, alguns homens carregam enormes caixas de som e as depositam nessas “covas rasas”, nessas feridas sobre a pele da terra. Protegidas por uma cobertura de madeirite são então enterradas e ligadas ao som, que começa a emitir a gravação de “Juízo Final”, na voz do próprio Nelson Cavaquinho. A leitura dessa obra revelou-me um movimento interno que tenta romper limites e oferecer-se ao externo. Naquele momento, na imagem em movimento, eu entendi numa instância além do conceito e da razão, a idéia de punctum em Barthes em seu ensaio sobre a fotografia. Falo de vontade e desejo, lado a lado. Falo de necessidade também. Não dava mais pra separar uma da outra, necessidade e desejos eram uma coisa só. A voz asfixiada que canta, que força a terra sobre ela, que invade o escuro da sala de projeção, que pontua a cena do espaço vazio na paisagem do vídeo, imprimiu em mim pura angústia. Para Freud, a angústia é o resultado da transformação da libido sob a repressão aos desejos, ou seja, é ela própria um estado afetivo de desprazer. “Quando o ego é forçado a reconhecer a sua fraqueza, afoga-se em angústia: angústia da realidade, em face do mundo externo; angústia normal, ante o superego, e angústia neurótica diante das paixões do id.” Para Freud, a angústia é o primeiro trauma da perda do objeto na hora do parto. È ainda Freud que nos fala: “O nome Angust (angústia) – angustiae, Enge, um lugar apertado, um estreito – acentua a característica de compressão na respiração, que foi então, (no nascimento) a conseqüência de uma situação real e que é repetida subseqüentemente, quase invariavelmente, com um afeto. É muito sugestivo, também, que o primeiro estado de angústia tenha surgido na ocasião da separação da mãe.” A angústia, como a vejo nesse momento, é marca da solidão, e sós somos sempre incompletos. Dessa crença momentânea, busquei na lembrança a letra de “Luz negra”, a composição maravilhosa de Nelson Cavaquinho e como numa descoberta fui mergulhando na leitura da obra do Nuno. Diz o poeta, num lamento:

Sempre só

Eu vivo procurando alguém

Que sofre como eu também

E não consigo achar ninguém



Sempre só

E a vida vai seguindo assim

Não tenho quem tem dó de mim

Estou chegando ao fim



A luz negra de um destino cruel

Ilumina um teatro sem cor

Onde estou desempenhando o papel

De palhaço do amor


Ao batizar seu vídeo com o título homõnimo à composição de Nelson, o artista nos forneceu o fio de Ariadne pra passear pelo labirinto asfixiante das imagens: a busca por se completar. Ele não verbaliza diretamente esse sentimento, apenas insinua com o título da canção. Recalca essa confissão, mas ela flui nas imagens e transforma-se em angústia. Mas quem busca? O artista ou o seu expectador? Ora, sou eu próprio que estou em busca. A angústia é minha, toda minha, mesmo que seja do autor também. A leitura é minha, é própria, e pode não ter nada, absolutamente nada, com a proposta do artista. Isso é o que menos importa no momento de saborear uma obra de arte, de interpretá-la, de admirá-la. Sou eu quem está sob uma luz cruel, negra. Sou eu asfixiado, sou eu enterrado naquele campo, sou eu que canta a solidão. E não é assim que as coisas acabam acontecendo na leitura da arte? Não somos nós que matamos Desdêmona? Que lamentamos as escolhas? Ou que por elas lutamos até a morte? Não fomos nós que apertamos a corda no pescoço de Julião Tavares e nos amarelamos diante do soldado amarelo? Sou Antígona, mas sou rei Lear, sou Luís da Silva e sou Fabiano. Sou, portanto, o cachorro morto, mas também sou Nelson Cavaquinho, vivo, aos meus ouvidos internos, já que não cantava “Luz negra”, que era apenas o título do vídeo, revelando minha solidão numa sala escura do CCBB. Mas faltava agora ouvir com o o ouvido externo e de novo a voz de Nelson me encantava e redimia:



O sol....há de brilhar mais uma vez

A luz....há de chegar aos corações

Do mal....será queimada a semente

O amor...será eterno novamente

É o Juízo Final, a história do bem e do mal

Quero ter olhos pra ver, a maldade desaparecer

O amor...será eterno novamente.


O que posso mais dizer aqui? A experiência da arte é mais que cérebro, é também corpo. Não vou dizer que chorei, pois não era pra tanto, mas a emoção dessas leituras marcou-me tanto que resolvi escrever esse relato muito pessoal.