Meu poema maior
Dia desses recebi, pela terceira vez, via e-mail uma mensagem “edificante” contendo, além da pergunta “Você é infeliz?”, uma seqüência de fotos impressionantes: registros da miséria ao redor do mundo. Tais imagens não me eram novidade, pois já havia recebido a mesma mensagem, com as mesmas fotos, mas a pergunta era “Você reclama da sua vida?”. Eu que, por natureza, só não sou mais pessimista que Graciliano Ramos (será mesmo que não sou?), senti efeito oposto daquele a que se propunha a tal mensagem: edificar em mim um sujeito acomodado e cheio de culpa, menos resmungão e menos infeliz com minha mazelas, uma vez que as alheias (as das fotos) eram muito maiores que as minhas. Ora, por esse princípio, a mensagem vinha me dizer: Fique feliz, por que os outros são infelizes ou, Não reclame da vida, pois tem gente pior do que você. Esse é um raciocínio raso e revela, sob uma capa de sentimentalismo tolo, uma miopia social tremenda. Pode espernear, caro leitor, mas grosso modo é justamente essa a conclusão que a tal mensagem me traz, pois ao questionar meu desassossego, minha infelicidade e meu desajuste diante do mundo, ela o faz esfregando em minha cara o desassossego, a infelicidade e o desajuste do outro, querendo construir em mim um cidadão que aceita seu destino e é feliz, por que outros são completamente infelizes. A leitura desse tipo de “bem-intencionada” literatura da grande rede remeteu-me ao poeta John Donne, metafísico inglês (1572-1631).
Representante de uma poesia que sofreu a pecha de pedante, arrogante, devido principalmente a sofisticação e elaboração estética, ao “cerebralismo” de seus adeptos, Donne destacava o pensamento sincero de que “Nenhum homem é uma ilha, completo em si próprio; cada ser humano é uma parte do continente, uma parte de um todo” e por isso mesmo, concluía, “a morte de cada homem diminui-me, porque eu faço parte da humanidade; eis porque nunca pergunto por quem dobram os sinos: é por mim”. Sim, é por mim que dobram os sinos, eu quem sofro naquelas fotos que me enviam com “boa intenção”. Quando vejo essas imagens todas, sou o homem sem uma perna pulando pela estrada, sou a menina oriental pedindo esmolas, sou o grupo de negros africanos escrevendo no chão, sou todos eles, porque não sou ilha e sou cidadão do meu tempo. Reconheço nesses registros o punctum a que se refere Barthes na sua Câmara clara e sei que sou eu quem está naquela sensação que a imagem traz.. Você pode até dizer, com toda razão do mundo, que é um exagero eu querer comparar a minha situação com a do menino etíope que definha diante dos olhos do abutre, mas o que você não entende é que me é impossível ser feliz num mundo em que o menino definha diante do abutre e eu, do conforto do meu escritório, diante do meu computador, me sinto impotente para mudar esse retrato. Lembro Drummond: “Tenho todo o sentimento do mundo e apenas duas mãos”. Como cantava Gonzaguinha, pela voz de Fagner, “Não dá pra ser feliz, não dá pra ser feliz”.
Poema maior (sob o prisma de Bandeira)
Quero cantar os passos matinais
De minha prole, de meus irmãos
Desses meus espelhos fraturados
Louvar seus pés decididos, suas mãos
Suas unhas com esmalte barato
Sujas de óleo ou carvão
Seus olhares destemidos, apavorados
Tão carentes e tão senhores de si
Nessa manhã fria de novembro
Saudar os rostos sérios, os bocejos
O cansaço estampado na expressão de sono
Que invade meu caminho nesta hora
Sou eu naquele par de sujos tênis
Naquela saia de brim desbotado
Na farda de vigilantes e policiais
São minhas as costas onde se apóia aquela mochila
É meu o ombro que suporta o mundo
E a mão calejada que arrasta uma criança
É meu o estômago de quem não se alimentou nesta manhã
E as dores de quem veio em pé no coletivo lotado
Sou eu, eu que mal dormi
E corro atrasado para empacotar margarinas
É minha a teta flácida na boca do menino
É minha aquela boca ávida
Confiro o pouco tempo no pulso falso e barato
E lamento os meses que se foram pelo ralo
Eu quem tosse, espirra, fuma e cospe
Sou a prole que tece esta manhã
Com seus fios de esperança e desencanto
E seus gestos de homem
Ou será a manhã, fria, de novembro
Que, com sua melancolia e bruma,
tece um novo homem em mim?
(Leonardo Almeida Filho)
Representante de uma poesia que sofreu a pecha de pedante, arrogante, devido principalmente a sofisticação e elaboração estética, ao “cerebralismo” de seus adeptos, Donne destacava o pensamento sincero de que “Nenhum homem é uma ilha, completo em si próprio; cada ser humano é uma parte do continente, uma parte de um todo” e por isso mesmo, concluía, “a morte de cada homem diminui-me, porque eu faço parte da humanidade; eis porque nunca pergunto por quem dobram os sinos: é por mim”. Sim, é por mim que dobram os sinos, eu quem sofro naquelas fotos que me enviam com “boa intenção”. Quando vejo essas imagens todas, sou o homem sem uma perna pulando pela estrada, sou a menina oriental pedindo esmolas, sou o grupo de negros africanos escrevendo no chão, sou todos eles, porque não sou ilha e sou cidadão do meu tempo. Reconheço nesses registros o punctum a que se refere Barthes na sua Câmara clara e sei que sou eu quem está naquela sensação que a imagem traz.. Você pode até dizer, com toda razão do mundo, que é um exagero eu querer comparar a minha situação com a do menino etíope que definha diante dos olhos do abutre, mas o que você não entende é que me é impossível ser feliz num mundo em que o menino definha diante do abutre e eu, do conforto do meu escritório, diante do meu computador, me sinto impotente para mudar esse retrato. Lembro Drummond: “Tenho todo o sentimento do mundo e apenas duas mãos”. Como cantava Gonzaguinha, pela voz de Fagner, “Não dá pra ser feliz, não dá pra ser feliz”.
Poema maior (sob o prisma de Bandeira)
Quero cantar os passos matinais
De minha prole, de meus irmãos
Desses meus espelhos fraturados
Louvar seus pés decididos, suas mãos
Suas unhas com esmalte barato
Sujas de óleo ou carvão
Seus olhares destemidos, apavorados
Tão carentes e tão senhores de si
Nessa manhã fria de novembro
Saudar os rostos sérios, os bocejos
O cansaço estampado na expressão de sono
Que invade meu caminho nesta hora
Sou eu naquele par de sujos tênis
Naquela saia de brim desbotado
Na farda de vigilantes e policiais
São minhas as costas onde se apóia aquela mochila
É meu o ombro que suporta o mundo
E a mão calejada que arrasta uma criança
É meu o estômago de quem não se alimentou nesta manhã
E as dores de quem veio em pé no coletivo lotado
Sou eu, eu que mal dormi
E corro atrasado para empacotar margarinas
É minha a teta flácida na boca do menino
É minha aquela boca ávida
Confiro o pouco tempo no pulso falso e barato
E lamento os meses que se foram pelo ralo
Eu quem tosse, espirra, fuma e cospe
Sou a prole que tece esta manhã
Com seus fios de esperança e desencanto
E seus gestos de homem
Ou será a manhã, fria, de novembro
Que, com sua melancolia e bruma,
tece um novo homem em mim?
(Leonardo Almeida Filho)
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