Nem tudo é mansidão
Francisco Goya
Saturn Devouring His Son
Oil on plaster transferred to canvas, 4' 9 1/8" x 2' 8 5/8"; Prado, Madrid
A BOCA DE UM HOMEM VELHO
Saiba, nem tudo é mansidão.
Quando olhares para a boca de um homem velho
Pensa quantos lábios deve ter tocado
Quantas línguas sugado
Quantos sabores provado
Pensa nos dentes dessa boca de homem velho
Quanto terá mastigado?
Que carnes, que frutos triturado?
Que mamilos e tetas mordiscado?
Quando fitares a boca de um homem velho
pensa, jovem leitor, na senectude daquela língua
e em que ordens terá decretado
quantas palavras mastigado? Quantos versos lambido?
Que nãos... a quantos ferido?
Que sins... a quantos acariciado?
Pensa nos verbos no imperativo
Nos substantivos gelados e lânguidos adjetivos
Nos silêncios engolidos e gritos vomitados.
Quando cravares teu olhar na boca de um homem velho,
flor murcha decadente, lábios enrugados
como pétalas costuradas em linho gris
pensa nos sorrisos que brotaram em tempos viçosos, imprecisos
em campos da alma fértil e fresca
banhados por raríssimos orvalhos
que o tempo fez questão de eliminar
Pensa no hálito-brisa que então partia
dobrando as flores da vida desejada
anunciando a chuva definitiva
que levaria a alma-seiva para outras safras.
Quando olhares a boca de um homem velho
E dela ouvires “Filho, o que te aflige?”
Responde, com calma, que teu olhar investiga
O tempo, o tempo, o tempo, o tempo.
E se ela tornar a perguntar a ti
Na teimosia típica de um velho,
“Filho, o que te assusta?”
Olha firme para aquela boca, sem medo,
E não deixe que ele perceba
Que nela vês os corpos dilacerados de teus irmãos
E os fiapos de carnes presos naquelas presas.