sexta-feira, novembro 24, 2006

Nem tudo é mansidão











Francisco Goya
Saturn Devouring His Son
Oil on plaster transferred to canvas, 4' 9 1/8" x 2' 8 5/8"; Prado, Madrid




A BOCA DE UM HOMEM VELHO


Saiba, nem tudo é mansidão.

Quando olhares para a boca de um homem velho
Pensa quantos lábios deve ter tocado
Quantas línguas sugado
Quantos sabores provado
Pensa nos dentes dessa boca de homem velho
Quanto terá mastigado?
Que carnes, que frutos triturado?
Que mamilos e tetas mordiscado?

Quando fitares a boca de um homem velho
pensa, jovem leitor, na senectude daquela língua
e em que ordens terá decretado
quantas palavras mastigado? Quantos versos lambido?
Que nãos... a quantos ferido?
Que sins... a quantos acariciado?
Pensa nos verbos no imperativo
Nos substantivos gelados e lânguidos adjetivos
Nos silêncios engolidos e gritos vomitados.

Quando cravares teu olhar na boca de um homem velho,
flor murcha decadente, lábios enrugados
como pétalas costuradas em linho gris
pensa nos sorrisos que brotaram em tempos viçosos, imprecisos
em campos da alma fértil e fresca
banhados por raríssimos orvalhos
que o tempo fez questão de eliminar
Pensa no hálito-brisa que então partia
dobrando as flores da vida desejada
anunciando a chuva definitiva
que levaria a alma-seiva para outras safras.

Quando olhares a boca de um homem velho
E dela ouvires “Filho, o que te aflige?”
Responde, com calma, que teu olhar investiga
O tempo, o tempo, o tempo, o tempo.
E se ela tornar a perguntar a ti
Na teimosia típica de um velho,
“Filho, o que te assusta?”
Olha firme para aquela boca, sem medo,
E não deixe que ele perceba
Que nela vês os corpos dilacerados de teus irmãos
E os fiapos de carnes presos naquelas presas.

quarta-feira, novembro 08, 2006

Nessas manhãs de vento...





Sou campa, epitáfio em carne
Movo-me por uma lavoura de corpos
Vasto campo de ossos e cabelos, vou...
Repousam em mim velhos fantasmas
Assombram-me nas noites de meus dias,
Espantam meus olhos com sua invisibilidade
Sussurram em meu ouvido sua ausência tão presente
Tão presente, tão aqui, tão cá, presente...
Sou curvo e torto pelo peso de meus mortos
Carrego-os sobre os ombros, sob o peito
Ouço-os chorar, cantar a minha finitude, cobrar palavras
Sinto suas línguas frias em minha pele quente,
Lamento-os. Alimento-os com a solidão do meu medo
Saboreio sua língua em minha língua, sua pele em minha pele
Sua insubstância compõe minha substância.

Eu
túmulo, cova,
eu todo cemitério
Eu
catacumba, ossuário
inteiro necrotério

Meus defuntos defumam meu espírito
Com seus vapores de saudade e sofrimento
Este espírito meu que é também deles,
tomam-no de assalto no estupor das manhãs nubladas
Nas tardes de chuva ou no silêncio absoluto das madrugadas
Escuto seu soluço no sabiá do quintal, seu riso no cantar das cigarras
Quase posso vê-los no embaciado do olhar sonolento
Invadem como sem-terras este latifúndio de vida e sentimento
apossam-se de minha alma quando rio, ou choro, ou tremo
Meus mortos, carrego-os e carregam-me.

Eu
alma penada,
morto-vivo
Eu
caça-fantasma,
zumbi



Hoje, ao ouvir uma velha canção no rádio,
Reconheci a voz de um deles nos versos e na modulação
Outros revivem quando leio seus poemas favoritos, quando sinto certos cheiros,
Quando experimento o frio ou fome ou sede, quando como ou leio,
Lá estão, todos eles, os maravilhosos eles que se foram
com seus medos, sonhos, desejos e segredos mais sagrados
seus planos, flores que a morte colheu com a mão fria e pestilenta
flores raras e doloridas no jardim do inevitável,
frustrados num buquê trágico de magnólias esquecidas.
Meus fantasmas residem em meus sentidos, renascem neles
Uma flor, um tato, um vento fresco que me bate ao rosto
a visão de um pôr de sol, uma alvorada, um barco tosco
me trazem seus cheiros, peles, risos francos, abertos
depositam em mim suas carnes, suores e espermas e mênstruos e salivas
e valsas dançadas e carnes mastigadas e roupas rejeitadas
seus cabelos, palpitação de amores, rancores e vinganças não vingadas
Meus mortos estão muito vivos nas coisas do mundo sensível que me cerca
Vejo-os ressuscitar a cada lampejo de memória, cada lembrança
Cada inexplicado momento de saudade.
Vivos em mim, meus mortos não morrem.

Eu
eterno, passageiro
Eu
decrépito, derradeiro

Um dia vou-me repousar em outro corpo
Como matéria de lembrança, de euforia, talvez tristeza
Estarei vivo na carne viva de meu filho?
De meu amigo? De minha mulher? Do cobrador? Do bancário?
Do ascensorista que me levou ao último andar da Matriz?
Do médico que assinou meu atestado de óbito?
A única certeza que tenho é que viverei neste poema
Quando, ao leres, lembrares o nome do poeta que o compôs
Um velho bardo, talvez sem rosto, perdido na poeira das manhãs de vento.


Léo (set/out/nov 2006)



foto minha, em 8 de novembro de 2006 (por volta das 18 horas e 30 minutos)