O parco capim da existência
Depois de ter nascido seis vezes, aquele espiritinho cansado já se dizia locupletado de gente. Chega, ele bramia. Não quero mais família, pátria ou religião. Quanto imbróglio, meu Deus! E espargia seu odor de ectoplasma desencantado pelo éter do abismo. Não por menos, seis vidas eram muita coisa para qualquer espectro, ainda mais tendo que vivê-las sempre no mesmo lugar. Filme repetido. Filme ruim repetido. Seis vezes brasileiro, pobre, duro. Não há quem aguente, uivava no caminho para a sétima reencarnação. Trazia uma aura verde-amarela que, impregnada em sua insubstância, o diferenciava dos outros espiritinhos que aguardavam na fila a hora de reencarnar. Essa aurazinha bicolor provinha, com certeza, de tanta vida vivida nesse país de bananas que a grande maioria evitava encarar. Brasil? Tô fora, diziam eles, às vezes exagerando no sotaque ou mesmo afirmando No way, man! Mas esse fantasminha não, ele tinha que nascer aqui sempre. Carma? Fado? Destino? Sabe-se lá o que acontecia com ele. Nas seis vidas anteriores, onde fora índio, mameluco, negro, branco e nissei, aprendera a ser enganado, humilhado, sacaneado, fodido, traído, pisado, torturado, amordaçado, cagado, enfim, concluíra com louvor a pós-graduação em ser brasileiro pobre e sem futuro. Ser cuspido, escarrado e desesperançado. Pêagadê em brasilidade de vertente e linha negras, na matriz proletária rasteira e líquida e certa. Disso ele entendia como nenhum outro espírito, até por que todos os espiritinhos, após uma temporada por estas bandas, sempre optavam por reencarnar na Europa ou América do Norte. Quero do bom e do melhor, diziam. Já paguei meus pecados por aí, ladrava um novíssimo canadense apontando o Brasil do céu. Purifiquei meu carma por essas bandas, ronronava com asco um brand new american boy. Mas ele, coitado! Por absoluta e completa letargia - que ele já começava a desconfiar ter-se incorporado ao seu caráter por influências tupiniquins, impregnado sua índole, marcado o seu futuro - descambava pela sétima vez num hospital sujo e lotado na periferia de uma grande cidade brasileira. Chega, ele gritava ao nascer, não quero mais, não posso mais, não devo... mas, não sendo compreendido, era tarde demais! Se tudo corresse como o previsto, morreria jovem, de forma violenta, desovado num terreno baldio ou chacinado com outros espiritinhos em um barzinho pé-de-chinelo, onde jogaria sinuca com amigos de futuro tão trágico quanto o dele. Se tivesse sorte, morreria no início da terceira idade, na porta de um posto de saúde, implorando atendimento, tendo à mão, amassado junto ao peito, um santinho católico. Quem sabe não pudesse mesmo padecer num asilo sujo, como já acontecera numa encarnação passada? Ou decapitado numa cadeia superlotada? Ou espancado até a morte numa estação de metrô por causa de sua sexualidade? Ou baleada pelo ex-marido inconformado pela separação? De uma coisa ele tinha completa e absoluta certeza: na próxima vez, na oitava vez, nasceria muito longe dali, ou, se não fosse possível tal sonho, ele se animava todo, viria para botar tudo abaixo e mudar de uma vez por todas esse destino triste que insiste em se perpetuar no Brasil. E mudaria tudo a ferro e fogo, pois, entre as várias coisas que aprendera, uma delas era que a democracia no Brasil é pasto para os que têm grana. Sempre fora assim, as mesmas vacas sagradas pastando o parco capim da existência.