A peste branca
A peste apareceu em minha vida na forma de uma notícia assustadora, com
sabor de ficção, irreal, forjado, artificial; veio como uma peça, uma
traquinagem, uma mentirinha, uma brincadeira de mau gosto; surgiu, enquanto
almoçávamos, na expressão de seriedade
ensaiada da apresentadora de um telejornal, com jeito de coisa escandalosa,
recheada de sensacionalismo barato, como um bizarro ingrediente entre receitas
culinárias, notícias da crise financeira mundial e os gols da rodada do
campeonato brasileiro de futebol, enfim, apenas uma notícia a mais na pauta
daquele dia. Depois veio estampada em revistas, em manchetes de tablóides -
ambrosia para o apetite voraz da imprensa marrom - sempre num tom apocalíptico,
coisa que, por estarmos bastante acostumados à histeria típica dos
profissionais da comunicação de massa, não nos fazia levá-la muito a sério,
apenas um modismo, disse meu pai tragando o seu cigarro; em pouco tempo,
julgávamos nós, incautos, encontrariam uma catástrofe mais interessante para
povoar nosso imaginário do fim dos tempos. Mas a coisa mostrou-se não ser bem
assim, e isso ficou claro quando, depois de uma alardeada visita de médicos e
pesquisadores americanos e europeus à região de Mosoto, no interior do Zaire, foi
detonado um artefato nuclear naquele país, eliminando, em fração de segundos,
toda uma população de portadores e não portadores da tal peste, riscando
inapelavelmente do mapa, cidades, vilas e povoados daquele país africano, que
ousara abrigar o nascimento da doença.
Pouco tempo antes dessa tragédia, alguns casos isolados começaram a
pipocar na França, na Alemanha e nos Estados Unidos. As autoridades sanitárias
desses países tranqüilizavam suas populações afirmando que a epidemia era um
fenômeno isolado e que já estava em curso um grande plano de contenção da
peste. Por meio desse plano, que os jornais divulgavam em tom de descrença,
foram adotadas medidas drásticas que, por sua natureza, revelavam a situação
crítica que os políticos tentavam camuflar a todo custo; assim, respaldados no
terror da coisa desconhecida e poderosa, fecharam aeroportos, bloquearam a
entrada de qualquer indivíduo ou produto proveniente das regiões-foco, enviaram
forças militares para, inutilmente, empreenderem um cerco a países africanos
que apresentavam sinais mais graves da epidemia; votaram verbas extraordinárias
para pesquisas e para a construção de misteriosos abrigos de concreto que, mais
tarde, pela televisão, viriam mostrar-se de uma utilidade no mínimo macabra. O
que não sabíamos, embora desconfiássemos, como avestruzes diante do perigo
iminente, é que a peste estava fora de qualquer controle e que, até àquele
momento, não havia solução alguma que pudesse contornar o sacrifício de toda
uma nação, como acabou acontecendo com o Zaire. A comoção internacional,
naquela hora, só não era maior que o imenso terror que tomou conta de todos.
Acompanhávamos as notícias ansiosamente, buscando uma luz para aquilo que
parecia ser o maior dos pesadelos: finalmente a natureza conseguira forças
suficientes para nos expurgar da face da terra. Lá no fundo de cada um de nós
batia aquela esperança de que tudo não passasse de um angustiante pesadelo, que
de repente todos acordaríamos e respiraríamos aliviados. Ledo engano. Os
ecologistas avançavam suas críticas sobre o progresso tecnológico descontrolado
e amoral, acusavam as pesquisas genéticas de serem a causa do surgimento da
doença. Até então o que se sabia era que o vírus era incomparavelmente mais
destrutivo e mutante que qualquer outro já registrado. A peste manifestava-se
de maneira traiçoeira, pelo ar, pela água que bebíamos, pelo toque, pela
secreção, pela saliva, pela picada de um inseto contaminado, pela ingestão de
carnes ou vegetais que de alguma maneira tivessem mantido qualquer contato com
o vírus - batizado apropriadamente por cientistas indianos que o isolaram como
HArmagedomV. A vítima manifestava inicialmente os sintomas de um simples
resfriado que, em menos de 36 horas, após infestar os pulmões, obstruía os
brônquios, impedindo a respiração, matando-a, após dolorosa agonia, por asfixia
radical. Tudo limpo, sem manchas, marcas, caroços, tumores, suores ou
sangramentos. Uma peste branca, como acabou conhecida. O pior de tudo era a
constatação de que o vírus não mantinha um padrão de incubação. Não se tinha
ideia de quando ele dispararia a tragédia, semanas, meses, anos? Isso era o
pesadelo de todo cientista. Impossível prever quem estava contaminado a tempo
de impedir sua propagação. Mas a solução final adotada pelos americanos no caso
do Zaire, mostrou-se ineficaz. O vírus já se fazia notar em outros cantos do
planeta e era impossível conter seu avanço. Obviamente não iriam explodir todos
os continentes. Os casos se multiplicavam em progressão geométrica, sem
controle, sem esperança. Sabíamos que nos grandes laboratórios de pesquisa
travava-se uma luta desenfreada contra o relógio que, inexoravelmente, parecia
apontar o extermínio da raça humana. E era essa a terrível expectativa que
tínhamos, o fim de nossa espécie. A peste selecionara a vítima ideal de sua
carnificina: o homem. Nenhum outro ser vivo do planeta era atacado por ela. O
enigma maior estava justamente em identificar o que nos tornava objetos
exclusivos do desejo letal do vírus. Lembro-me de meu pequeno irmão traçando
sua teoria, dizendo-nos que talvez o “bichinho” - como gostava de chamar o
HArmagedomV - gostasse apenas de bichos que pensassem. Enquanto meu pai e meus
dois outros irmãos riam dessa estapafúrdia teoria, eu mastigava-a como uma
hipótese viável. Porque não? Não poderia ter sido justamente nossa razão e
nossa ganância a causadora disso tudo? Quem me garantia que esse vírus não
fosse fruto realmente de nossa intervenção na natureza, através da poluição,
das pesquisas genéticas, das armas químicas, bacteriológicas, do lixo atômico,
dos testes nucleares? Quem? Nenhuma região do mundo estava imune à peste
branca, os casos surgiam aos milhões, da Nova Zelândia à Portugal, do Uruguai à
Groenlândia, do Hawai à Paraíba, indiferente à cor, raça, credo, sexo, idade,
ideologia; nos grandes centros urbanos como Nova York, São Paulo, cidade do
México, Rio, Buenos Aires, Londres, Teresina, as pessoas estavam morrendo como
moscas; tentavam fugir inutilmente para o interior do seu país, onde a peste já
havia se instalado e ceifava vidas do mesmo modo. Finalmente éramos uma macabra
aldeia global. Nos países mais pobres a situação era caótica, famílias inteiras
dizimadas, gerações que sucumbiam à fome da peste, corpos incinerados aos
milhares em praça pública, choro, desespero, dor. O quadro repetia-se nas
nações ricas, a diferença estava na forma de eliminação dos cadáveres
contaminados. Em tempo recorde, construíram enormes sepulcros de concreto onde,
coletivamente, eram lacrados os corpos das vítimas. No geral, a paisagem de dor
e desespero repetia-se em Paris ou Bogotá, a fragilidade humana era a mesma
diante do inevitável. Quando o Papa sucumbiu à peste, uma das últimas notícias
internacionais que nos chegaram naquela época, a impressão que tínhamos era a
de que não haveria mais milagre, que tudo estava irremediavelmente perdido, que
era chegada a hora do apocalipse. Estava formado o terreno fértil de onde
brotaria, com vigor medieval, o fanatismo e sua legião de profetas. Era o fim
do mundo, o juízo final, gritavam nos quatro cantos do mundo. É o castigo pelos
nossos pecados, nós o merecemos, tentavam nos convencer. E convenciam os
ingênuos, os desesperados. Multidões reuniam-se para cantar, rezar, chorar seus
mortos, clamar a Deus por suas vidas, esperando o fim iminente. E nessas
multidões a peste encontrava o ambiente perfeito para exercer seu ofício,
disseminando-se como reação em cadeia, propagando-se como o rompimento de uma
barragem, uma bomba nuclear orgânica de efeito devastador. Quando os primeiros
casos aconteceram em nossa rua, meu pai, desesperado, arrancou-nos da cama, de
madrugada, e nos levou para um terreno de chácara, a alguns quilômetros da
cidade. Nesse lugar, que dificilmente visitávamos, ele mantinha uma pequena e
variada plantação, que era muito bem cuidada por Clementino. Sua intenção era
retardar o máximo possível qualquer baixa em nosso pequeno exército, eu, ele e
meus três irmãos, isolando-nos do resto do mundo. Por isso partimos na calada
da noite, lenços brancos enrolados no rosto, como bandidos de filmes de cowboy,
em silêncio, o coração batendo forte. Eu sabia que estávamos nos despedindo de
nossa casa, nossa rua, nossa cidade, enfim, de nossas vidas. A rua escura
abrigava, em algum lugar, o famigerado predador invisível. Meu pequeno irmão,
que não apreendera ainda a dimensão de tudo aquilo que se passava ao seu redor,
brincava de bang bang, matando com seus tiros de mentira os raros transeuntes
daquela madrugada. Minha mãe, costumava
dizer meu pai, tinha tido a sorte de, falecendo no parto de meu pequeno Durango
Kid, não presenciar o fim de tudo. Qualquer espirro, tosse, era motivo para que
ele se alarmasse, isolasse o sintomático do resto do grupo e observasse
atentamente, numa aflição gritante, o desenrolar daquele espirro, daquela
tosse. E não é o caso de se falar aqui em paranóia, era necessário agir assim,
a peste branca não mandava aviso, não escolhia hora, vítima ou lugar.
Simplesmente desabrochava, uma flor tétrica, após um espirro, e tudo virava
pavor no lar amaldiçoado com seu perfume. O caos foi crescendo lentamente; com
a morte de milhões de pessoas, as atividades diárias foram simplesmente
desaparecendo, não havia quem operasse as usinas, as fábricas, os trens, as
câmeras de televisão; não havia quem ministrasse cultos, aulas, missas,
velórios; não existiam mais aqueles que vendessem ou comprassem, que obedecessem
ou mandassem, que elegessem ou roubassem; não havia mais quem enterrasse os
mortos, quem lhes fornecesse a extrema-unção, quem cuidasse dos doentes, dos
jardins, dos parques, dos animais no zoológico, quem fizesse sexo, quem fizesse
partos; em pouco tempo, dizia meu pai, à luz de velas, não haverá ninguém para
morrer, a peste terá terminado seu trabalho, comerá a si própria. Não tínhamos
notícias dos parentes, dos amigos, vizinhos. Na certa estavam mortos e apesar
de toda a dor que sentíamos, ninguém, em sã consciência, se arriscaria a voltar
à cidade para confirmar a terrível suspeita. Estávamos todos juntos, plantando
o que comíamos; bebendo, após fervida, a água de um poço artesiano, sem
notícias do mundo, sem luz, sem gás, sem remédios, sem esperança alguma, apenas
sobrevivendo, e eu me perguntava: Para quê? E meu pai dizia: apenas porque
estamos vivos, por isso insistimos. As pouquíssimas pessoas que apareceram por
estas bandas foram expulsas por meu pai e seu revólver. Lembro com tristeza a
figura de uma mulher, o marido doente e seu filho, implorando ajuda, pedindo
comida, e a voz dura do meu pai, à uma distância que julgava segura,
ameaçando-os. Tentei argumentar em favor deles e em troca recebi um dolorido
cascudo na testa. Vi quando a mulher sumiu na estrada de terra, arrastando o
pequeno pela mão, o marido apoiando-se em seu ombro, tossindo, tossindo. Havia
três meses que estávamos aqui, quando a monotonia foi quebrada pela febre
repentina de meu irmão mais novo. Ela chegou sem tosse, sem espirro, mostrando-se
orgulhosa no bastão de mercúrio que meu pai retirara da axila do pequeno: 38
graus. Notei no meu pai o olhar de tristeza e pânico. Como de praxe nessas
ocasiões, meu irmão foi isolado num quartinho no fundo da casa, onde, durante
todo o dia, desdobramo-nos em cuidados, levando comida, água, tudo sem contato
algum, por uma pequena abertura na porta. Meu irmão, o pequeno prisioneiro,
chorava e tremia sua febre na solidão daquele quarto, e nós, logo ali, sem nada
podermos fazer além de aguardar o previsível desfecho. Antes que a peste
levasse meu irmão, caiu meu pai em desgraça; logo ele que, descumprindo as
regras básicas de sobrevivência, por ele mesmo criadas, ousara abraçá-lo um
dia, aos prantos. Depois caíram meus outros irmãos e Clementino. Um a um
foram-se de minha vida, sem apelação, sem socorro, sem nada. Em menos de três
dias, pateticamente, tornara-me o único ser vivo daquela casa. Já não chorava
mais, não tinha mais sentimento, nem dor, nem saudade. Nada. Virara uma planta,
uma coisa. Enterrei-os lado a lado, no fundo do terreno, embaixo de uma árvore,
numa cova que meu pai, precavido como sempre, mandara abrir antes de ser
abatido pelo HarmagedonV. Meses se passaram sobre minha solidão. Não sei se
existe alguma alma viva neste mundo, mas escrevo este relato sem me importar se
algum dia encontrará algum leitor. E não é assim a arte de qualquer escritor? O
último pedaço de vela queima sobre a mesa, deixei portas e janelas abertas ao
vento, que entrem os sussurros dos fantasmas, que apascentem as baratas; uma dormência me invade lentamente. Há dois
dias comecei a tossir um pouco, mas creio que não tive febre. Lembro-me de meu
pai e digo para mim mesmo: escrevo por que vivo, simplesmente por isso,
escrevo.