segunda-feira, junho 01, 2020

Cenas de Copacabana - As plantinhas tristes



Experimente ler a crônica ouvindo: https://www.youtube.com/watch?v=rpLdtuSTueQ


Estavam todos incrédulos. Um alvoroço na portaria, ambulância e polícia na rua estreita, atrapalhando o tráfego. Dona Maria Helena? A pergunta carregada de espanto. Do sétimo andar? E a mão cobrindo metade do rosto, impedindo que a surpresa se configurasse nos lábios afastados, a boca aberta. Seu Severino, o porteiro, ouviu um barulho forte na cobertura do bicicletário. Achou que fosse alguma molecagem de morador do prédio. Percebeu um buraco nas telhas de amianto e, no meio das bicicletas caídas numa bagunça enorme, logo percebeu um par de pernas e pés descalços, um corpo em posição insólita, uma poça enorme de sangue, o rosto enfiado no chão. Sim, Dona Maria Helena do sétimo andar, saltou para o mistério. Professora aposentada, tinha 64 anos, calada, muito discreta. Vivia com o pai, o senhor Delmiro, antigo funcionário da Casa da Moeda. Ele, portador do mal de Alzheimer, demandava muita atenção e cuidados da filha. Ela, cada vez mais silenciosa e deprimida, aproveitando-se de que o pai dormia, pulou do sétimo andar e desistiu de tudo. Os vizinhos não sabem que atitude tomar. Não se conhecem outros parentes. Dizem haver uns sobrinhos em Campos, mas não se tem notícia deles e nem sabem como contatá-los. Pobre seu Delmiro. Ainda bem que a doença lhe poupou dessa tristeza profunda. Para ele, pouco importa o que se lhe sobre da vida. Como Dona Maria Helena, em meu prédio, outros suicidas florescem pelas janelas de Copacabana. São mesmo uma espécie triste de flores, plantinhas negras e murchas que optam por não perfumar o tempo e florescem encharcadas de sangue no asfalto. Escolhem maneiras diferentes de partida. Ana C. voou para o asfalto da Toneleiros. Alguns abrem o gás, como Torquato Neto, em Botafogo. Outros ingerem venenos, como Aline, dezesseis aninhos, da Paula Freitas que, após uma briga com o namoradinho de escola, resolveu castigá-lo matando-se. Sob o sol e o ar salitroso e saudável de Copacabana há muita escuridão e desespero. Há muita solidão berrando nos apartamentos mais plácidos da Siqueira Campos, da Santa Clara, da Domingos Ferreira. Muito abandono, muito desencanto. Não pense que tudo são corpos belos e perfeitos, festas e caipirinhas na praia, baladas e chope gelado no Leme, pois não são. Sob a luz do dia, ocultam-se muitas sombras e figuras desesperançadas. Há aqueles que se jogam do décimo segundo andar do Edifício Presidente, na Prado Júnior, movidos pelo consumo exagerado de drogas, estes não são suicidas exemplares, embora, tecnicamente, sejam suicidas que adiantaram o relógio. Lembro-me do caso desse rapaz, vinte e um anos e muita loucura, que se jogou de um Edifício em Nossa Senhora de Copacabana. Soube-se depois que passara o dia consumindo muita cocaína e às 3 da madrugada, paranóico, resolveu voar sobre a Avenida. No dia seguinte, uma poça de sangue e um dente perto do meio-fio atestavam o fracasso do vôo. Ìcaro sem mito. Há o caso da mulher que, saltando do quinto andar de um edifício na altura do Posto 6, caiu sobre uma mãe que empurrava um carrinho de bebê. Matou-se matando. O bebê escapou ileso e órfão de mãe. Vejam essa notícia que li recentemente: “O Ten-Cel BM Alex Vander, comandante do 17º Grupamento de Bombeiros Militar (Copacabana) manifestou recente em reunião do Conselho comunitário de Segurança de Copacabana e Leme realizada em 21/05/2013, a sua preocupação com o grande número de suicídios ocorridos em Copacabana. Segundo o comte. foram mais de 20 casos. Hoje tivemos a notícia de que 02 idosos teriam se jogado pela janela do nº 47 da Rua Santa Clara.” A coisa é séria e é muito triste. A extrema felicidade da babel cosmopolita agride a solidão dos velhos e solitários. O abandono é cruel. A obrigação de também ser feliz, mesmo não encontrando motivos para sê-lo, é o adubo que alimenta as raízes dessas plantinhas tristes que chamam de suicidas. Segue um pedacinho da letra de um samba que compus há tempos:

Ninguém há de viver seu sonho ou seu pesadelo
ninguém vai dormir por você
nem há se sonhar sua dor, viver seu desespero
ninguém vai gozar por você
Viver não tem drama.
Há solidão nos velhos que cruzam a rua
quase a se arrastarem
Há solidão naquele silêncio profundo
que seus olhos trazem
A solidão: companheira fiel do seu jantar.


 


Cenas de Copacabana - Os meninos do Rio











Experimente ler a crônica ouvindo:  https://www.youtube.com/watch?v=a6HgNG8Llvc

Há alguns minutos conversam nada discretamente. Riem alto, falam alto, gesticulam escandalosamente. Contei, lá se foram dois cigarros bem tragados e, depois, jogados na calçada. Acabou de acender o terceiro. Que coisa feia! Penso com meus eus encalacrados. Refiro-me aos maus modos do mais alto deles, o fumante, um sujeito grande, corpanzil bronzeado, muitos pelos e conversa esperta. O mais baixo é calvo, sunga preta, sem camisa, sandália de dedo. Presumo que veio da praia, tem areia nas canelas brancas. O outro, o fumante de maus hábitos, tem cabelos grisalhos, amarrados num rabo de cavalo prateado. Usa uma pulseira de couro e corrente no pescoço A testa, muito vermelha, avança no território capilar, como terra devastada por madeireiros inescrupulosos. Me pego sorrindo com essa ideia estapafúrdia do desmatamento capilar do sujeito, que também usa uma sunga, vermelha, velhinha, pois um pouco desbotada. Juntos, presumo, devem somar bons 120 anos de praia. Muita história pra contar. Muita maresia. Enquanto trocava a bateria de meu relógio, num chaveiro na esquina da Paula Freitas com Nossa Senhora de Copacabana, fiquei observando o papo daqueles dois velhos meninos do Rio. A conversa passou do futebol para a política e dessa para o jogo do bicho, que o mais baixo deles tinha faturado. Coisa pouca, ele disse, mas dá para umas “cervas” no Real Chopp. O outro, que descobri chamar-se Roberto, ou Alberto, ou Gilberto, pois o tratavam simplesmente como Beto, tinha uma tatuagem no braço esquerdo e era torcedor do Fluminense, denunciava-o a camisa tricolor repousando no ombro. Pés descalços. Era cumprimentado por grande parte dos transeuntes, razão pela qual deduzi que devia morar ali pertinho. Parecia mesmo estar no quintal de casa, tal a desenvoltura exibida em plena calçada. Aparentavam ser amigos há séculos, mas isso não me dá certeza alguma, pois o carioca, quando conversa, passa a boa impressão de te conhecer há séculos. Mas eu preferi investir na ideia de que eram realmente amigos de antigos carnavais. O mais baixo, no segundo casamento, quatro filhos, reclama da PA que lhe consome parte do ordenado. O cabeludo, 4 casamentos e várias aventuras que lhe renderam filhos espalhados pela Penha, Campo Grande e Niterói, mora com a mãe e um cachorro vira-lata, batizado Lennon. Aposentou-se recentemente e complementa os seus parcos rendimentos com a pensão que a mãe recebe como viúva de militar. Combinam um vôlei no Posto 3 “qualquer hora dessas” e sabem que não vão mesmo jogar essa partida, em hora alguma. Despedem-se com um abraço meio sem jeito, cheio de areia e suor e, tenho toda certeza, saudade sincera dos meninos que um dia foram. O moço do chaveiro, observando minha atenção para com os amigos que conversavam, me diz baixinho: o Beto aí, dizem, comeu a Janis Joplin. E eu fiquei sorrindo e pensando que Serguei não estava só nessa parada.

Cenas de Copacabana - Os cães












Experimente ler a crônica ouvindohttps://www.youtube.com/watch?v=coK7KB8KdDA
Qual o signo dele? A pergunta me pegou de surpresa. O inusitado na tardezinha urbana de Copacabana. Ele se referia ao cachorro. Eu não conseguia acreditar que a pergunta era endereçada ao Chiquinho, que eu trazia na coleira presa à guia. Disse-lhe, contendo o sorriso, que o meu cachorro tinha nascido em janeiro, dia dois. Ele emendou: os capricornianos são muito amistosos e continuou brincando com o meu yorkshire, que não tem noção de sua pequenez. A doçura, o encanto, a atração sincera que ele demonstrou com o cãozinho arisco, só reforçou a imagem que tenho captado nas ruas deste bairro: além dos turistas e dos velhos, os cachorros são as figuras constantes. O morador de Copacabana é um apaixonado por cães. De todas as raças, tamanhos, cores. Uns silenciosos, outros escandalosos. Uns agressivos, outros dóceis e medrosos. Andar pelas ruas de Copacabana é esbarrar com esses animais. É difícil distinguir quem guia quem, pois eles parecem levar seus donos para passear e manter contato com o mundo. Sim, são os cães que retiram seus donos de suas solidões e recolhimentos, dos apartamentos pequenos e os levam para ver outros donos e seus cães pelas ruas. Circulando pelo quarteirão ou caminhando na praça do Bairro Peixoto, os cães se atraem, se cheiram e, nesse contato, obrigam seus donos, que nunca se viram antes, a se aproximarem e conversarem. Do cumprimento de bom dia ou tarde, passa-se às perguntas sobre os animais, idade, sexo, nome e acaba-se ingressando em assuntos menos caninos e mais humanos, trivialidades, política, futebol, mulher, carestia, arrastão, medo, festa... os habitantes dos conjugados e kits mantêm contato com os moradores dos grandes apartamentos e casas de vilas. Tudo se dá por causa desses bichos que nos obrigam a dar voltas para que façam suas necessidades. É curioso notar que acabamos por saciar as nossas necessidades de contato humano, de ouvir o outro, de ver e sentir o estranho tão familiar, que partilha a vidazinha de Copacabana ao seu lado e que, de outra forma, passaria incólume ao seu afeto. Será que os cães planejaram essa estratégia para nos manter vivos, menos solitários e mais esperançosos com as coisas da vida? Tenho um amigo que confidenciou-me outro dia a sua teoria cruel. Segundo ele, quando o sujeito se dedica a passear com seu cão é por que desistiu da humanidade. A prática desse passeio com o Chiquinho tem me demonstrado justamente o contrário. É com meu amigo de quatro patas que tenho conhecido a vida cotidiana deste bairro. A história da vida privada em Copacabana não será completa se não houver um olhar atento à função social dos cães. A conversa que começou pelo signo de Capricórnio do meu yorkshire descambou para um contato amistoso, que rendeu-me a descoberta de um indivíduo inteligente e atento às coisas do mundo. Psicólogo, astrólogo, amante dos cães. De que outra maneira eu poderia conhecer alguém assim? Depois que nos despedimos e trocamos endereços de redes sociais para continuarmos nossa conversa, olhei para o Chiquinho e tenho certeza de que, em seu olhar de profunda negritude, brilhava uma luzinha de ardente felicidade e dever cumprido. Continuamos nosso passeio, ele de rabo abanando e eu assobiando uma velha canção dos Beatles.

Cenas de Copacabana - Os paraíbas




foto: João Gabriel A.









Experimente ler a crônica ouvindo:  https://www.youtube.com/watch?v=y7OEPImuOgU

Seu Luiz veio de Campina Grande ainda menino. O pai, já falecido, desceu pro sul lá pelos 1950, como previra Graciliano Ramos no finalzinho de “Vidas secas”. Morando em São Cristóvão, ganhou a vida como estivador, até que uma hérnia de disco o jogou para uma banca de balas e cocadas no Saara, pertinho da Uruguaiana. Seu Luiz é porteiro na Hilário de Gouveia, em Copacabana, e mora em Bonsucesso com a mulher e cinco filhos. No edifício ao lado, Raimundo, também paraibano - de “Serra branca, moço”, gosta de frisar, para marcar território e estabelecer a diferença – costuma comprar rapadura e outras guloseimas da “terrinha” no Centro Luiz Gonzaga de tradições nordestinas, a antiga feira de São Cristóvão. É lá que, quando tem algum tempo e dinheiro sobrando, gosta de ir aos sábados, para ouvir um bom forró de pé de serra. Hoje, enquanto seu Luiz varria a calçada em frente a entrada do seu condomínio, Raimundo, fumando, contava, meio invejoso, que um terceiro porteiro, o João, acabara de voltar da Paraíba, onde passara as férias, e onde não botava os pés desde 1971, ano em que chegou ao Rio, uma mão na frente, outra atrás, em busca de emprego.
            - Faz tempo que não visito meus irmãos em Campina. To precisando ir lá, mas não sobra dinheiro, disse seu Luiz caprichando num montinho de folhas secas.
             - Pois é, também não consigo - traga o cigarro e faz cara de quem refletiu muito em algo importante - não sei onde o João arranjou grana pras passagens... soube que ele foi com a tropa toda, mulher e filhos.
            - Bom pra ele, né, Raimundo? Diz seu Luiz, num tom de voz que, acentuando e estendendo a abertura do né, evidencia sua reprimenda.
            E ficaram nessa conversa mole, com uma saudade acochada e, no caso de Raimundo, uma ferroada de inveja.
           No edifício em que moro, há cinco porteiros que se revezam na função de faxina e portaria. São todos nordestinos, acredite. Tenho, às vezes, a impressão de que a grande maioria dos porteiros de Copacabana desceu do Nordeste para abrir e fechar as portas dos edifícios do Rio de Janeiro. Deveriam fazer um pequeno e particular senso para confirmar essa minha impressão. São profissionais zelosos, com exceções, é claro.   
Conhecem a fundo sua clientela, quem anda com quem, quem namora quem, quem brigou com quem, quem pode, quem não pode, quem manda e quem obedece. Porteiros são verdadeiros poços de informação do condomínio. Um conselho: não se meta em confusão com um porteiro, pois são quase donos do edifício. Como Raimundo, João e seu Luiz, muitos “paraíbas” integram o pelotão de porteiros da rua Hilário de Gouveia, Santa Clara, Domingos Ferreira, Prado Júnior... de toda Copacabana. Para os cariocas da gema, todo nordestino é “paraíba”, mesmo que baiano, piauiense, cearense. Assim, num mesmo balaio rubro-negro ostentando um NEGO, vão-se pernambucanos e alagoanos e maranhenses. É como se o mundo da portaria fosse todo ele de paraibanos. Para um carioca, ninguém nasce na Bahia, no Ceará ou Pernambuco. Todos somos – pois também sou – paraíbas. Não por outro motivo, há uma pracinha entre as ruas Siqueira Campos e Hilário de Gouveia, imprensada pela Nossa Senhora de Copacabana, que tem o singelo nome de Praça dos Paraíbas. Convenhamos, é muito mais agradável que chamá-la pelo nome real: Praça Serzedelo Correia, nascido no Pará, e que foi ministro de Floriano Peixoto, um paraíba de Alagoas.


Cenas de Copacabana - Domingo



foto: João Gabriel A.









Experimente ler a crõnica ouvindo:  https://www.youtube.com/watch?v=VGAWunS-i10

Copacabana. Domingo de Páscoa, nublado e calmo. Sob o céu cinza do Rio de Janeiro paira, misteriosamente, uma certa violência velada. Atravessei apressado a Hilário de Gouveia. Seguia a pé para a Sala Baden Powell, na Nossa Senhora de Copacabana, onde ouviria Música Brasileira de Concerto. Biscoito fino oferecido pelos lábios e dedos de um trio feminino, flauta, violoncelo e piano que preencheriam meu fim de tarde. A tranquilidade do passeio sofreu o primeiro impacto em frente a Delegacia de Polícia, ainda na Hilário, onde um grupo armado de policiais acompanhava um jovem, não mais que 18 anos, algemado. A cena surpreendeu-me por ser real, por vê-la ao vivo, fora da televisão. A tranqüilidade estampada na cara do jovem delinqüente parecia denunciar vasta experiência nesse trajeto. Havia um quê de traquejo naquela pose orgulhosa. Cabeça erguida, caminhou em direção a delegacia para autuação, creio. A visão trágica da juventude encarcerada e sem futuro me deixou cabisbaixo. Caminhei com certo desconforto, como se houvesse culpa em estar livre para saborear o banquete da cultura, enquanto outros se metem no caos do cárcere. Que caminhos distintos percorremos por essa vida? Tudo força das engrenagens sócio-econômicas ou haveria um espaço para a mão do fado? Basicamente nada nos difere, porém sigo meu caminho, agora menos tranqüilo que o olhar do jovem que adentrou a delegacia. Em frente ao Pavão Azul, outros jovens divertiam-se tomando cerveja, em pé, em algazarra, imunes ao drama que transcorria ali tão perto de seu sossego. Atravessei a Barata Ribeiro e segui em direção a Paula Freitas. Na esquina, o Real Chopp mostrava um bando de rubro-negros bebendo a espera do início da transmissão de uma partida de futebol. Caminhei pela Paula Freitas, entrei na Avenida Nossa Senhora de Copacabana e segui em direção ao teatro. Final de um domingo imprensado em feriadão, calma total. Cristo morto, Cristo ressuscitado. Tédio. Ou quase. Um grito, um choro, um pedido “Não me bate, moço”. Assustado, vi-me diante de uma cena cruel. O segurança de uma farmácia segurava um jovem negro pelo braço e descia-lhe a porrada, sem dó, inclemente, como um centurião romano e seu chicote. O garoto, magro, com jeito de quem estava dopado por álcool ou qualquer outra droga, caiu na calçada. O segurança partiu para cima, como quem, faminto, avança num prato de comida. Mão fechada, punho-aríete, na cara, sem titubear. O jovem chorava um choro sentido e, para mim que me peguei surpreso com tudo aquilo, sem sentido. Ou seria fingido aquele choro tão eloqüente? Vá saber! Mas que era dolorido ouvi-lo lamentar a queda, a surra, era. Uma mulher tomou as dores da vítima e protegeu-a de mais pancadas. Ele, recompondo-se, sentou-se no meio fio, cabeça baixa, mofino. O segurança, exaltado, discutia com a boa samaritana deste domingo. A tudo assisti, passivo, incrédulo, estático. Aquilo estava mesmo acontecendo? Retomei a minha caminhada, devagar, ouvindo o choro do rapaz, agora ecoando em mim. Dois jovens, o futuro perdido nas ruas de Copacabana. E eu, sem desviar de meu caminho, segui para a Sala Baden Powell para ouvir Francisco Mignone, Villa-lobos e outros desconhecidos compositores brasileiros.

Cenas de Copacabana - O velho




foto: João Gabriel A.










Experimente ler a crõnica ouvindohttps://www.youtube.com/watch?v=rZ13bQvvHEY


Ele passa numa elegância antiga, orgulhoso, é a própria heráldica do mofo em movimento. Sabe-se lá como armou-se de coragem e enfrentou as dores na coluna, no joelho direito e na bacia, superando os estalos da prótese no quadril e falta de ar para pisar a rua. Ainda posso e devo, deve ter pensado quando saiu de casa. Munido de toda a resistência e auto-estima, caminhou por Nossa Senhora de Copacabana sem o auxílio da bengala. Senhor de si, forçando a espinha contra o céu, o olhar no horizonte de carros e gente, desfilou como há muito não fazia entre camelôs, guardas municipais, gente comprando e vendendo, turistas cheios de areia. Empertigado, viril, varão. Assim ele se enxergou naquele passeio no finalzinho da tarde. De longe, fiquei observando o que se passava dentro dele, consigo enxergar o interior das pessoas, faz parte de meu trabalho como escritor, e eu vi a alegria quase infantil de sentir-se jovem e forte, apesar das oito décadas de uso. Por fora, não via o que todos constatávamos, mancava tristemente, passos trôpegos, lentos, arrastados. Por dentro, julgava-se um homem ainda jovem. Por fora... Era evidente que se forçava a caminhar naquele passo sem escora, sem apoio, mas isso não importava, havia um grande descompasso entre sua visão das coisas e as próprias coisas. Uma distância imensa entre intenção e gesto, mas isso não importava. Ele se via imbatível e nós o víamos tão frágil. Na certa, relembrava antigos passos numa noite morna de um dezembro, em fins de 1950, cigarro no bico, perfume no pescoço, uma bossa novíssima na vitrola de algum apartamento, e a imagem do Cristo, de braços abertos na esquina da Siqueira Campos com a Toneleiros, convidando para a vida. Hoje, passeando com meu cão, percebi sua presença orgulhosa. Passou claudicante, tentando conter a tosse, pulmões fracos e distantes da nicotina ha duas décadas, por ordem médica. Um vendedor de discos piratas tocava um funk escabroso na calçada. Ele não ouviu, pois o aparelho auditivo já não era de grande valia. Cruzou a Barata Ribeiro, no sinal em frente ao Pavão Azul, e sumiu lentamente num pequeno edifício na Hilário de Gouveia. Nessa noite, dormiu feliz como há muito não dormia e nem lembrou que o mesmo Cristo, de braços abertos, parecia convidá-lo para curtir a lua.

Leia a crõnica ouvindo: https://www.youtube.com/watch?v=rZ13bQvvHEY




Cenas de Copacabana - Na rua


foto: João Gabriel A.










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Noite dessas, subindo pela escada rolante na estação Siqueira Campos do Metrô, saída Siqueira Campos, ouvi a mulher do casal estacionado no degrau acima do meu “Se eu fosse você, não me seguiria”. Ele, com olhar de choramingo, insistindo “Vou até o fim com essa história, já passou da hora”. Era uma mulher cuja maturidade, denunciada por algumas mechas douradas e rugas nos cantos da boca, não conseguira apagar uma beleza jovial. Soprava nela ainda o vento dos dezessete aninhos. Entre as rugas, uma adolescente com gostinho de sal e maresia ainda desfilava. Parecia incomodar-se com a decisão aparentemente inflexível do parceiro. “Suzana, para de ser boba. Eu vou sim, vou mesmo”. Ele, um cara de barba e poucos cabelos, grisalhos, ostentando uma barriga orgulhosa de anos de chope – deduzi – acariciava os cabelos da mulher que repelia o assédio, sem convencer a ninguém. “Kiko, já conversamos mil vezes sobre isso. Não rola, cara. Vai dar merda! Para!” Eu, logo abaixo, deslizando para cima, aguçava os sentidos, precisava saber o que estava se passando. Como qualquer pessoa, muito curioso, queria saber o que ia dar merda. Voltava da Cinelândia, depois de uma tarde cansativa sob o calor tremendo desses dias. Fui visitar um amigo livreiro que mantém seu acervo de livros raros numa sala no décimo nono andar do edifício Municipal, bem ali ao lado do Teatro e da Assembleia. Depois de passar a tarde entre os quadros do Museu Nacional de Belas Artes, emendei com uma visita ao Moacir e seus livros. Conversamos sobre o tempo e sobre o passar do tempo, folheando velhos livros maravilhosos. Por volta das 21 horas, cansado do estirão do dia, ele acendeu um baurete e eu resolvi pegar o metrô em direção a Copacabana. Tudo o que eu queria era tomar um banho frio e abrir uma gelada, comer umas pataniscas, esticar as canelas diante da televisão. Na estação Botafogo, entraram Suzana e Kiko no vagão em que eu estava. Olhando o casal, me pego a imaginar sua história. Mania de escritor inventar vidas. Filhos? Viagens? Apertos financeiros? Brigas? Acho bonito quando um casal demonstra afeto em público, ligando um foda-se ao neopentecostal mais próximo, e Kiko não poupava Suzana de beijinhos na orelha, no pescoço. Ela, fingindo timidez, sorria de forma cativante emitindo uns trinadinhos, e cativava o Kiko, que insistia em explorar cada pedacinho de Suzana. Era um jogo gostoso de se ver, gato e rato prestes a se comerem, eu deduzi. Quando o carro parou na estação Siqueira Campos, ouvia ela dizer, respondendo a algo que ele sussurrou em seu ouvido, “Nem pensar. Tá maluco, Kiko? Endoidou, bicho?” Pronto. Naquele instante, mais que nunca, aquele casal conquistou minha atenção. Porque maluco? Qual teria sido a proposta? Mil pensamentos e imagens. Afrouxei o passo com a intenção de ficar perto deles, que vinham logo atrás, abraçadinhos. Ele sorria, como antes, mas algo nela mudara repentinamente. Estava apreensiva. “Não acredito que você vai mesmo fazer isso”, ela se desesperava e seu desespero parecia não incomodar o Kiko que a abraçava, puxando-a para perto de seu corpanzil. “Vem, cá, vem. Deixa de ser medrosa. Fica calma. Confia em mim, pô!”. Eu, cada vez mais curioso, não conseguia imaginar o que movia aquelas reações de Suzana e a aparente inflexibilidade do Kiko. “Você não confia em mim? Eu me garanto, porra!” Ela saltou da escada rolante e parou logo a frente, olhando pra ele, mudando o tom do discurso “Ah, meu amor, não é isso. Você não tem ideia do que vai acontecer se você insistir nessa parada”. Que parada, meu Deus? Que ideia? A vontade era entrar na história e perguntar-lhes na cara de pau. Saíram andando e eu, um stalker fajuto, tentando captar a conversa. Dobraram à esquerda na Toneleros e seguiram em frente. Fiquei parado, feito besta, na entrada da Hilário de Gouveia, observando o casal sumir no escuro. Nunca saberei o que o Kiko queria fazer e a Suzana tentava impedir.