quinta-feira, setembro 25, 2008

Meu poema maior

Dia desses recebi, pela terceira vez, via e-mail uma mensagem “edificante” contendo, além da pergunta “Você é infeliz?”, uma seqüência de fotos impressionantes: registros da miséria ao redor do mundo. Tais imagens não me eram novidade, pois já havia recebido a mesma mensagem, com as mesmas fotos, mas a pergunta era “Você reclama da sua vida?”. Eu que, por natureza, só não sou mais pessimista que Graciliano Ramos (será mesmo que não sou?), senti efeito oposto daquele a que se propunha a tal mensagem: edificar em mim um sujeito acomodado e cheio de culpa, menos resmungão e menos infeliz com minha mazelas, uma vez que as alheias (as das fotos) eram muito maiores que as minhas. Ora, por esse princípio, a mensagem vinha me dizer: Fique feliz, por que os outros são infelizes ou, Não reclame da vida, pois tem gente pior do que você. Esse é um raciocínio raso e revela, sob uma capa de sentimentalismo tolo, uma miopia social tremenda. Pode espernear, caro leitor, mas grosso modo é justamente essa a conclusão que a tal mensagem me traz, pois ao questionar meu desassossego, minha infelicidade e meu desajuste diante do mundo, ela o faz esfregando em minha cara o desassossego, a infelicidade e o desajuste do outro, querendo construir em mim um cidadão que aceita seu destino e é feliz, por que outros são completamente infelizes. A leitura desse tipo de “bem-intencionada” literatura da grande rede remeteu-me ao poeta John Donne, metafísico inglês (1572-1631).





Representante de uma poesia que sofreu a pecha de pedante, arrogante, devido principalmente a sofisticação e elaboração estética, ao “cerebralismo” de seus adeptos, Donne destacava o pensamento sincero de que “Nenhum homem é uma ilha, completo em si próprio; cada ser humano é uma parte do continente, uma parte de um todo” e por isso mesmo, concluía, “a morte de cada homem diminui-me, porque eu faço parte da humanidade; eis porque nunca pergunto por quem dobram os sinos: é por mim”. Sim, é por mim que dobram os sinos, eu quem sofro naquelas fotos que me enviam com “boa intenção”. Quando vejo essas imagens todas, sou o homem sem uma perna pulando pela estrada, sou a menina oriental pedindo esmolas, sou o grupo de negros africanos escrevendo no chão, sou todos eles, porque não sou ilha e sou cidadão do meu tempo. Reconheço nesses registros o punctum a que se refere Barthes na sua Câmara clara e sei que sou eu quem está naquela sensação que a imagem traz.. Você pode até dizer, com toda razão do mundo, que é um exagero eu querer comparar a minha situação com a do menino etíope que definha diante dos olhos do abutre, mas o que você não entende é que me é impossível ser feliz num mundo em que o menino definha diante do abutre e eu, do conforto do meu escritório, diante do meu computador, me sinto impotente para mudar esse retrato. Lembro Drummond: “Tenho todo o sentimento do mundo e apenas duas mãos”. Como cantava Gonzaguinha, pela voz de Fagner, “Não dá pra ser feliz, não dá pra ser feliz”.


Poema maior (sob o prisma de Bandeira)

Quero cantar os passos matinais
De minha prole, de meus irmãos
Desses meus espelhos fraturados
Louvar seus pés decididos, suas mãos
Suas unhas com esmalte barato
Sujas de óleo ou carvão
Seus olhares destemidos, apavorados
Tão carentes e tão senhores de si
Nessa manhã fria de novembro
Saudar os rostos sérios, os bocejos
O cansaço estampado na expressão de sono
Que invade meu caminho nesta hora
Sou eu naquele par de sujos tênis
Naquela saia de brim desbotado
Na farda de vigilantes e policiais
São minhas as costas onde se apóia aquela mochila
É meu o ombro que suporta o mundo
E a mão calejada que arrasta uma criança
É meu o estômago de quem não se alimentou nesta manhã
E as dores de quem veio em pé no coletivo lotado
Sou eu, eu que mal dormi
E corro atrasado para empacotar margarinas
É minha a teta flácida na boca do menino
É minha aquela boca ávida
Confiro o pouco tempo no pulso falso e barato
E lamento os meses que se foram pelo ralo
Eu quem tosse, espirra, fuma e cospe
Sou a prole que tece esta manhã
Com seus fios de esperança e desencanto
E seus gestos de homem
Ou será a manhã, fria, de novembro
Que, com sua melancolia e bruma,
tece um novo homem em mim?

(Leonardo Almeida Filho)

segunda-feira, setembro 08, 2008

Viagem ao redor do meu saco


Xavier de Maistre (1763-1852)














Quero apresentar meu pequeno poema, mas antes devo dizer que ando encafifado com um texto profano que ousei começar. Há meses, entre pausas longas provocadas pelo desânimo, pela descrença e pela falta de inspiração, e curtíssimos momentos de febril labuta e criatividade, venho lidando com esse bendito híbrido (não é conto, nem crônica, nunca foi ou será romance, não sei do que se trata). Posso confessar que o mote me veio de Machado. Não, mentira minha. Não foi propriamente de Machado que me surgiu a idéia de escrever a ladainha em prosa, mas de um escritor que habitava os favoritos do velho Bruxo: o francês Xavier de Maistre e seu divertido “Viagem ao redor do meu quarto” (1794). Comecemos pela constatação de que alguns leitores me acusam de caprichar na dose de veneno pornográfico em alguns dos meus escritos. Injusta acusação, grito cá com meus pentelhos. Grito em vão, pois até os amigos mais chegados adquiriram o hábito de me presentearem com lembranças porno-eróticas que adquirem em suas viagens. São estátuas nuas, copos fálicos, cinzeiros com motivos pornográficos, enfim, uma parafernália de pequenos objetos profanos. Devo confessar que gosto muito desses mimos. Olho-me no espelho e aquele menino que vejo não é o velho sujo e sacana que muitos enxergam nos textos e na vida real. Paciência. Certa vez, lá se vão bons 26 anos, num concurso de poesias, ouvi o seguinte comentário de um leitor acerca de singelos versos que inseri no certame promovido pelo Diretório Central de Estudantes “Parece coisa de Jorge Amado”. Em princípio, cheio de um preconceito alimentado pela burrice e pela ingenuidade, tratei que me xingava, pois como poderia me comparar ao velho Jorge Amado, um não escritor? Depois, curioso, ouvi sua explicação de que meus versos tinham muito palavrão, eram indecentes, como a prosa do baiano. Ora, ora, ora. Começou ali a minha fama de um escritor puto que almeja ser um puto escritor. Hoje, respeito o velho Jorge e sua capacidade ímpar de escrever uma boa história, coisa que eu, e muitos escritores deste país, principalmente da minha geração, carecemos absurdamente, mas continua pregada em mim a fama de um boca suja. Há uns dias, sofrendo com esse meu novo texto inspirado em Xavier de Maistre, comecei um longo discurso sobre o sexo, território de Afrodite e das bacantes em transe, pasto das vacas sagradas de nossa natureza. Batizei meu híbrido com o título paródico “Viagem ao redor do meu saco”, e mergulhei de corpo e alma em sua escritura. Que me perdoem os espíritos puros, que ainda há, e como diria meu mestre Manuel Bandeira, “as virgens cem por cento e as amadas que envelheceram sem maldade”, mas não faço concessões ao bom gosto quando escrevo e vem daí minha fama de boca gregoriana (do poeta barroco baiano). Palavrões são doces quando bem colocados na boca de um personagem. Nada melhor que um porra, que um cu ou uma buceta, com u, no momento propício da narrativa. Lembro-me de Rubem Fonseca e seus avós que nunca foderam. Ainda não terminei esta viagem em prosa, mas tenho meio caminho andado em volta de meu saco, e foi justamente no meio dessa caminhada que deparei-me com a lembrança feliz da “Arte de amar”, de Bandeira:



Manuel Bandeira (1886-1968)









Arte de Amar

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não
(in Belo, Belo)

Os versos desse belo poema cairam como espada na bainha lúbrica de meu texto, em epígrafe, pois toda a discussão do meu híbrido reside no embate entre tendões, nervos, fluidos, líquidos e sussurros e a matéria inefável do mistério: em onde reside o desejo? Devo logo deixar claríssimo que não tenho a mínima pretensão de descobrir de onde e para onde vai a libido, deixando-a a cargo do “desvão imenso do espírito”. Note como neste ponto começo a mastigar palavras que transcendem a concretude do real: falo de desejo, espírito, libido, no momento exato em que trato de falo, orgasmo, cópula, sêmen. Ao escrever a “Viagem ao redor do meu saco” estou, mesmo sem querer, invadindo a seara metafísica de Deus e das almas, apesar de querer falar de carne e corpos. Como minha matéria aqui é a linguagem e não a ação da cama, é óbvio que meu caminho passeia pela reflexão sobre o sexo, não é, portanto, o sexo; nem simulacro de sexo, apenas indagação, abstração, confissão, ficção em torno de sexo. Não se goza pela palavra, quando se escreve ou se a mastiga. Inspirado em Bandeira, escrevi meu pequeno poema, ainda sem título, que segue:


As almas
Na cama são cegas
Os corpos
Em braile se enxergam.