domingo, setembro 10, 2006

CONFRARIA EM CURTO-CIRCUITO

Ontem, 9 de setembro, manhã de sábado, alguns poetas reuniram-se para ler seus versos no meio da rua - na verdade, nas ruas estranhas do Centro Comercial CONIC - versos disparados a favor de uns poucos admiradores da poesia. Uma espécie de confraria lírica, capitaneada pelo quixotesco Paco Cac (cabra bom de trabalho e verso), ladeado pelo também incansável Luís Turiba e sua baladeira poética. Batman e Robin da moderna poesia brasileira, ou brasiliense (pelo menos ontem, genuinamente candanga), a dupla apresentou os poetas convidados à platéia, estimada pela PM (que fica logo ao lado do palco) em dois milhões de pessoas (eu e minhas mentiras). O mote foi uma justíssima homenagem ao poeta e crítico Cassiano Nunes, que luta contra uma interminável depressão e nao pôde, por isso mesmo, prestigiar o evento. Compareceram alguns poetas da cidade, o Leozinho aqui, um deles. Ouvimos a poesia concreto-vegetal-brasilúdica-brasilírica de Nicholas Behr. Os versos fixos de Alan VIgiano. A poesia regionalista-transcendental de Angélica Torres Lima (em performance arrebatadora de três fantásticas mulheres...lamento não ter em memória seus nomes pra registrar aqui), os poemas ecologicamente engajados da acreana Francis Mary, Jason Tercio e sua "fake-cascavel", Lisianny Oliveira acima do acima do acima, Nonato Veras...enfim, uns malucos que, como eu, estranhamente gostam de poesia. Seguem os poemas que li (pois nao sei declamar, nao sei recitar, nao sei rezar e só queria mostrar meu olhar, meu olhar, meu olhar...).

O primeiro dos poemas, um texto-manifesto, é dedicado alegoricamente ao Cassiano Nunes, e supõe a criação de uma ONG intitulada Fundação Cassiano Nunes, cuja função seria preservar poetas e poesia, bichos em extinção.

Cassiano Nunes


FUNDAÇÃO CASSIANO NUNES PARA A PRESERVAÇÃO DA POESIA

"Eu vou torcer pela paz
Pela alegria, pelo amor
Pelas coisas bonitas eu vou torcer, eu vou"
Jorge Benjor

a um poeta em depressão

Os poetas são animais em extinção
Tombam como sibipirunas e jacarandás
Rarefeitos como ar puro
Vão-se feito ararinhas azuis... minguando.
Os bons versos são mico-leões dourados
Carecem de que se lhes dêem o valor de sua raridade
Somem-se em vez de somarem-se
E nisso vai-se também nossa alma apaixonada.
È preciso preservar os ipês e os poetas
As Baleias e os versos
A ética e o tigre albino de Pequim.
É necessário proteger a mata atlântica
E resgatar os bons sonetos
Pois se morremos com rios poluídos
Tornamo-nos tristes sem a poesia
Bestas ficamos sem arte e sem ar
Sem magia, sem estranhamento, sem ritmo
Sem pulso, sem penas, sem escamas, sem rimas
Sem vôo, sem delírio, sem mergulho, sem bicos
Sem lábios, sem garras, sem fibras, sem vida.
Temos mata, rio e bicho em nossa alma
E se matamo-los fora de nós
Morremo-nos também inteiramente
Sobrando-nos a assustadora possibilidade
De rimarmos o deserto ante nossos olhos
Com o outro deprimente deserto, o de nosso espírito.
(Leonardo Almeida Filho)


O segundo poema daquela manhã, um longo poema melódico, fala do amor - sempre o amor - e dos quatro elementos (água, ar, fogo e terra).


MEMÓRIA DO LODO

À maneira de Manoel de Barros


Sinto as raízes cantando
no tom do lodo e das pedras
o cheiro doce da luz das rãs

a carne farta da terra
anoitecendo nas gias
lesmando o sonho...desacordar.

Amanhecerei orvalho
entardecerei riacho
anoitecerei no teu suor

madrugarei tempestade
vento ventando vontades
serei semente vibrando ao sol

Almas das águas dos rios
borboletando no cio
do faz-de-conta que não tem fim

e ao me perder, criar limo
brotar canção, virar bicho.
Sei do desgosto de ser capim

O desandar das lagartas
sobre o azul de fastio
tanta saudade chovendo em mim

pelas goteiras da alma
sinto encharcar-me da calma
de quem sabe que trilha seguir.

Saudade é a luz quando escuro
o deslizar nobre e seguro
das cobras d' água no pantanal

bicho sem pé nem canseira
eis a saudade...certeira
ei-la, tocaia no meu quintal.

Se sabe a cruz, sabe a chaga
de quem conduz pela espada
de quem tem fé justo por não crer

na paz das almas marcadas
no chão das crias aladas
no que se passa antes de chover

Vem ver a noite emprenhada
a cor da estrela abortada
na marca-gosma das lesmas.

esse evangelho do lodo
vibra na parte e no todo
num pergaminho de pedras:

Que a chuva leve o que há de pior
que o vento traga o que há de melhor
que o fogo nos purifique
que a terra enfim frutifique
o amor.
(Leonardo Almeida Filho)


Manoel de Barros

sexta-feira, setembro 08, 2006

HOLBEIN E AS ALMAS CEGAS E DESDENTADAS


Infelizmente, para muitos de nós, bebida é - e será sempre - apenas água e comida, pasto (Viva os Titãs). Tudo, no fim das contas, uma questão de perspectiva ou situação social, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Em tempos de espetáculo (como diria Débord), melhor mesmo é o capim verde e água cristalina, mesmo que falsos, mesmo que isopor, fast food, fast foda. Outros alimentos, nem pensar, nem mastigar, mesmo com dentes invisíveis e cariados. Chego a crer que somos todos, em maioria, almas banguelas num mundo de vampiros e grandes caninos. Este texto cifrado vem ao encontro de Holbein (1497-1543) e seus "Embaixadores", pois, para muitos, a mancha estranha na representação de duas ilustres e nobres figuras (de porte orgulhoso e feição autoritária), é apenas uma mancha estranha e nao representa ameaça alguma, não significa nada além de borrão colorido. E estranho, aqui, vem também dialogar com Freud, sim sinhô! Concluindo essa pequena introdução ao meu poema, o que realmente queria destacar é a total cegueira a que chegamos. Apaguem a luz, ninguém aqui vê nada, nao quer ver nada ou, oops, quer ver sim as fotos do pênis de Michael Jackson.

Hans Holbein - The Ambassadors (1533) - Oil on wood, 207 x 209.5 cm - National Gallery, London



















AS FOTOS DO PÊNIS DE MICHAEL JACKSON

"A Pilati, pelo mote
A Pessoa, pelo mito
A Paco, pela mente
A Leminski, pelo norte"

O poeta atento, atado, assiste a tudo:
Estes são tempos de luminosa escuridão e fastio
São tempos de cio e de vícios, de ócio e de estio
De olhos encandeados e almas cegas, tempos de vazios
São tempos velozes, de afeto veloz, de eternidade veloz
Fast food, fast sex, fast love
São tempos de nãos, de muitos nãos
Não à dor alheia, à lagrima do irmão
Não à fome e ao cansaço do vizinho
Não ao afeto, não à carícia, não às delícias
Não ao meu, ao teu, ao desespero de nós todos
Mil vezes não e não, infinitos nãos...
Não ao sim.
São tempos de valores cruéis, tempos de escura luz
Pois é preciso ver as fotos do pênis de Michael Jackson
Que importa se 800 mil tutsis são degolados em Ruanda?
Se vários cobradores fonsequeanos andam pipocando inocentes?
É preciso ver as fotos do pênis de Michael Jackson.
Quem quer saber de Maria mula que morreu de overdose quando 15 pacotes de cocaína pura estouraram em seu estômago?
Que notícias me dão daqueles imigrantes afogados no mar do Caribe tentando a Ítaca norte-americana?
Que importa o choro que cultiva o ódio dos colonos judeus que enfrentaram a polícia na desocupação de Gaza?
Quem olha pelo menino palestino cujo pai explodiu-se num mercado de Telaviv?
É preciso ver as fotos do pênis de Michael Jackson
A quem interessa a agonia de periféricos soropositivos que definham sem auxílio e sem remédios?
Quem fala daqueles que choram no apartamento ao lado?
É preciso ver as fotos do pênis de Michael Jackson
Quem há de acariciar e velar o sono agitado do pequeno órfão em São Paulo e Jacarta?
Quem de nós, que não nos sabemos, irá falar pelos desempregados do subúrbio da cidade do México e da invasão da Estrutural em Brasília?
Quem quer saber da rosa do povo que míngua à luz destes tempos de negros sóis?
É preciso ver as fotos do pênis de Michael Jackson
O poeta estende ao sol a sua alma esfiapada
Mostrando sua dor interminável concentrada
E a poesia de fiapos que apresenta, condensada,
morre lentamente...asfixiada:
São estes, tempos de muita luz e cegueira iluminada
De abandono e vastas solidões acompanhadas
Tempos de um tudo que é nada
Tempos de avesso e aversões.
Estes são tempos de sins e de pecados
Sim à mão fechada e punho erguido antecedendo a porrada na cara do inocente
Sim ao escarro na boca que há muito não beija
Sim ao linchamento do estuprador em Ibotirama e ao espancamento do sem-teto na Praça da Sé
Sim ao ódio e seu combustível de reservas inesgotáveis.
Sim ao não.

A mulher branca e a mulher negra querem ver as fotos do pênis de Michael Jackson
As mulheres, a branca e a negra
O homem branco e o homem negro também querem ver as fotos do pênis de Michael Jackson
Os homens, o branco e o negro
O menino e a menina, brancos, o menino e menina, negros, querem ver as fotos do pênis de Michael Jackson
Os meninos e as meninas, os brancos e os negros
A avó branca e o avô branco, o avô negro e a avó negra, querem ver as fotos do pênis de Michael Jackson
Os avós, os brancos e negros
Os tios brancos e os tios negros, todos querem ver as fotos do pênis de Michael Jackson
Os tios, os brancos e os negros
O padre, o pastor, o rabino, o líder sindical, o delegado, o juiz e o detetive, brancos e negros, querem ver as fotos do pênis de Michael Jackson
O padre, o pastor, o rabino, o líder sindical, o delegado, o juiz e o detetive, brancos e negros A taquígrafa, o repórter fotográfico e o motorista da van que transmite o julgamento ao
vivo, todos brancos, querem ver as fotos do pênis negro de Michael Jackson
a taquígrafa, o repórter fotográfico, o motorista da van, os brancos
Os transeuntes, brancos e negros, que lêem jornais , querem ver as fotos do pênis de Michael Jackson
Os transeuntes , os brancos e os negros
Os internautas, ciberneticamente brancos e negros, querem na grande rede ver as fotos digitalizadas do pênis de Michael Jackson
Os internautas, os brancos e negros
Os políticos, republicanos e democratas, brancos e negros, querem ver as fotos do pênis de Michael Jackson
Os políticos, os republicanos, os democratas, os brancos e os negros
Na Alemanha e na Inglaterra brancas, todos querem ver as fotos do pênis negro de Michael
Jackson
Os alemães, os ingleses, os brancos
Os virgens, os pedófilos, os abusados e os portadores de vitiligo, brancos, negros e malhados, querem ver as fotos do pênis de Michael Jackson
Os virgens, os pedófilos, os abusados, os portadores de vitiligo, os brancos, os negros, os malhados
Os santos, que não têm cor, querem ver a foto colorida do pênis de Michael Jackson
Carros explodindo, gente explodindo, estômagos implodindo, corpos sofrendo ao frio e fome e sede e dores e, o pior, nenhum deles viu a foto do pênis do Michael Jackson.
Escritores escrevendo, leitores lendo, prostitutas trepando, ladrões trabalhando, lesmas lesmando, e nenhum deles viu a foto do pênis do Michael Jackson
Woytila morreu sem ver; os 111 policiais iraquianos mortos pelas milícias fundamentalistas em Bagdá não viram; a junkie belga encontrada morta num beco em Bruxelas também não viu a foto do pênis de Michael Jackson.
A dona de casa ocupada em lavar, passar, bordar e foder com o marido, não teve tempo de ver; o operário que mergulhou vinte metros abaixo da terra para soldar os fios de cobre não teve jeito de ver; o trabalhador escravo na fazenda de um deputado no Pará não pensou em ver; a freira carmelita com febre, no claustro, não conseguiu ver a foto do pênis de Michael Jackson...
E o mundo continua rodando, rodando, rodando em torno das minhas retinas fatigadas e que ainda não viram a foto do pênis de Michael Jackson.

O poeta atado, atento e atônito, assiste a tudo:
Estes são tempos estranhos, de luz e escuridão.
Não há dor capaz de mover a mão do homem em direção a outro homem
Não há mais outro e todo sentimento do mundo parece estar
Apenas no desejo de ver as fotos do pênis de Michael Jackson.

(Leonardo Almeida Filho)

segunda-feira, setembro 04, 2006

Flores Amarelas e Medrosas ou O Medo Além do Medo

Quem tem, tem medo. Isso é o que nos diz a sabedoria popular. Medo de que? De quem? Não importa, porque isso é o que nos mantém vivos: o medo. Irracional, não explicável, absoluto, o medo. Foi ele que nos tirou das árvores para a savana e, já eretos, desta para o chá das cinco em Buckingham. Sim, foi medo o que nos fez reagir, lançar mão de paus e pedras, e criar filmes e praças de guerra ou alimentação. Não foi outra coisa que não medo, o que nos fez cultivar mitologias, de gregos a incas, baianos, carismáticos e evangélicos. Somos decididamente uma espécie covarde. A raça humana é medo puro. Note bem, ou não note, apesar do blá-blá-blá que lhe impuseram na escola, creia, a história não se faz com coragem ou heroísmo, mas com medo. Vencedores e perdedores o foram por medo. Toneladas e toneladas de medo ergueram pirâmides e prédios da Sears; cavaram Suezes e Panamás; fincaram bandeiras na lua e nas mais altas montanhas; enfim, sem o medo não moveríamos uma pedra do lugar. Ou você acha mesmo que a falta de medo nos fez abrir mão de nós mesmos? Freud, outro medroso eminente, já sabia disso ao escrever O mal-estar da civilização. O medo nos ferrou, é verdade, mas também nos fez chegar à lua, criar a internet , a Microsoft , a bomba atômica. O medo nos deu Kafka e Graciliano Ramos, Goya e Portinari, Bach e Tom Jobim, Hitler e ACM, Tom & Jerry, Paul & John.
Medo de barata, de perder o emprego ou o bonde da história, de broxar numa transa, de ser estuprada no beco, de não ir para o céu, de escuro, de injustiça, de descobrirem seus crimes, de não ser reeleito, de perder o poder, de escrever errado, de ficar órfão, de ir pra lista de inadimplentes, de mijar sangue, de ter câncer no pulmão, de estar com mau hálito, de que um asteróide louco e sem rumo choque-se com o planeta e você, sem mais nem menos, não tenha mais razão alguma pra ter medo....enfim, tudo se repete indefinidamente. Medo, medo, medo.



Estes são tempos de medo, como aqueles anos 1930/40 quando o Carlos Drummond de Andrade reflete, escreve e publica "Sentimento do mundo" (1940). É desse livro o poema a seguir:

Congresso Internacional do Medo

Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medos dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nosso túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.



A moral cinzenta do fatalismo


Segundo Bosi, no seu referencial História concisa da literatura brasileira, a poesia de Raimundo Correia (1859 -1911) destila a moral cinzenta do fatalismo. Ao comentar, superficialmente, a poesia parnasiana desse “mestre seguro” , “menos fecundo e mais sensível” que os demais parnasianos, Bosi considera que seus versos são “exemplo de uma poesia de sombras e luares que inflectia amiúde em meditações desenganadas”. Na verdade, como muitos outros bons autores dessa nossa língua, Raimundo Correia é um ilustre desconhecido. Admirado por muitos escritores (Manuel Bandeira e Mário de Andrade são seus fãs de carteirinha), dentre os quais me incluo, é autor de um dos mais belos sonetos de nossa literatura, “As pombas”, sob o qual revolteia uma polêmica acerca de “inspiração” em outra obra. Não me interessa aqui discutir essa pendenga. Em 1979, ganhei um exemplar de “Poesias” (6ª.Edição, 1958), coletânea do autor que inclui poemas de três de suas obras, “Sinfonias” (1883), “Versos e versões” (1887) e “Aleluias” (1891). Em dedicatória, leio: “Ficou muito tempo numa anônima livraria e foi encontrado por acaso. Para o Leo, meu amigo paraibano e ‘parnasiano’. Norma”. Devo confessar que de parnasiano tenho apenas a paixão apolínea por um verso perfeito, como apreciador de poesia, não como poeta – que não tenho a paciência para limar versos, esmerilhar palavras, lapidar rimas.
Fiz um poema dedicado ao Raimundo Correia, mas antes registro aqui o maravilhoso poema III, conhecido como “As pombas”:

Vai-se a primeira pomba despertada
Vai-se outra mais... mais outra...enfim dezenas
De pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sangüínea e fresca a madrugada...

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...

Também dos corações onde abotoam,
Os sonhos, um por um, céleres voam.
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais...

(Raimundo Correia)


Agora o do Leozinho:

Poema para Raimundo Correia


Sofra o coração, embora!
Sofra! Mas viva! Mas bata
Cheio, ao menos, da alegria
De viver, de viver!

Ah, Correia, meus pombos que não voltam
E por não voltarem eu que me acabo
E vou-me entre brumas de cigarros que não fumo
E com notáveis fumos de defuntos que evaporam

Ah, Correia, meu poeta dos pombais desertos
Eu com meus oníricos desenhos tediosos
Suspirando o tédio úmido dessa chuva que não cessa
E que por não cessar vai me afogando.

Ah, Correia, se soubesses o quanto dói não ter mais pombas
E assim, sem asa ou vôo, seguir telúrico
Chafurdando o que era sonho em lama e lodo e limo
Apoiado no pombal vazio desses anos
Agora, mais que nunca, só pombal, só pombal.


sábado, setembro 02, 2006

NIHIL MAN


(Jean-Michel Basquiat, "Untitled", 1981 - acrylic and mixed media on canvas)


Se pudesse ser o autor do Eclesiastes, com certeza iniciaria assim o meu texto sagrado: Ironia, pura ironia! Tudo é ironia. Talvez, dependendo do meu estado de putifação (que é diferente de putrefação, embora possa, às vezes, ser a mesma coisa, mas que aqui quer dizer estado de raiva, de estar puto), pudesse ousar mais e iniciar dessa maneira: Sacanagem, pura sacanagem! Tudo é sacanagem. E porque isso ? Porque na vida, brother, tudo são ironias e sacanagens, enfileiradas como aquele bando de velhos na fila para aposentadoria do INSS. Que há de ser do incauto ser, pergunto eu, que mergulhasse no rio vital sem medo ou precaução? Sim, que poderia restar de um tolo assim que, impávido e decidido, metesse o peito na vida real sem escudo ou capacete? Zero, respondo-me, nada, vazio, nihil man. Ou não? Um todo em chagas e descrente, amargo, rancoroso, isso sim é o que restaria desse idiota mor que se entregasse de cara lavada ao bafo podre dos ventos dessa vida. Sou um desses, devo dizer, aspirei a podridão do ar num hausto fundo. Contaminei-me com a descrença da viabilidade da bela via. Ilusão, pura sacanagem. Tudo é sacanagem. Mas antes de escrever o Eclesiastes assim, dessa maneira desanimadora, certamente teria sido eu um desses homenzinhos estúpidos que crêem na natureza humana, uma besta, uma anta iluminista, um candidato ao troféu Asno Feliz. No primeiro golpe, que nem me lembro de onde partiu, devo ter titubeado, mas não perdido a fé. Continuei a mesma besta. O certo é que sucederam-se porradas e porradas, uma longa fila de sossega-leões, e eu oscilando entre o vergão e a cicatriz, o chão e a parede, o ajoelhar-se e o fingir-se de morto. Isso, aprendendo a ser hipócrita e a ser cruel, a desconfiar de tudo e todos, a ser humano. Desenvolvi o mais que comum hábito de ser frustrado, exatamente igual a você que me lê. Hoje, quando me dizem sorrindo na televisão que uma bomba matou tantas pessoas, eu fico louco esperando que venham logo as notícias do esporte. Se me enviam uma carta de apelo para salvação de uma mulher nigeriana, clico na tela do computador e sinto-me leve e redimido do meu pecado. Aprendi que há realmente tempo de plantar e de colher, mas que há um tempo sem controle e previsão: o tempo da praga de gafanhotos que destrói uma vasta plantação de bons frutos em mim. Hoje sou estéril, nuvem de gafanhotos.

sexta-feira, setembro 01, 2006

Considerações acerca dos Ipês



Só quem respira esta secura do planalto central, nesta época do ano, sabe e sente a epifania de um ipê amarelo rompendo o gris e a fumaça, típicos dos agostos e setembros. Conversando outro dia com o Marcus Correia, após sua aula de futurismo russo, me dizia ele sobre seu fascínio com a poesia de Maiacóvski. Esse assunto remeteu-me aos anos 80, saudosos e tediosos anos, quando eu, com mais cabelos e menos barriga, assinava versinhos tipo "escada" (como o próprio Marcus define a poesia em degraus do poeta russo), visivelmente inspirado pelo suicida. A lembrança de Maiacovski e sua camisa amarela, chocando os olhos e ouvidos da burguesia russa do início do século passado, por associação, lembrou-me a aparição de ipês amarelos pela estrada, quebrando nossa tediosa viagem urbana, causando estranhamento, tornando-se poesia. Tal conversa e associação, rendeu-me estes versos, cujo título é o título desta postagem inaugural:

"Tu, maiacovski no cerrado,
Que me fitas em arrogante vaidade
Não imaginas o lugar em que me jogas
Ó violência amarela nas retinas
Apolínea ereção que me fustiga
Me cegas na seca que me cerca
Tu, vlaidoso vladimir amarelo,
Cíclica presença da aparente morte
Exibindo-te revelas minha pequenez.

Tu, blusa amarela da botânica
Irrompes em virulenta epifania
Pra que eu, metafisicamente de joelhos,
Possa adorá-lo com espanto, na afasia
Doce bala laica que profano
No sagrado deleite do olhar
Tu, perfeição, pecado, engano
Que a gula da visão vem devorar

Tu mostras o natural destino
Da beleza que carregas e que invejo
No frescor de tuas folhas que admiro
Dança o vento quente seco que renego
Tu, russo poeta feito árvore
Nuvem que calças cobrem e oculta
Mostra a novidade de ser belo
No amarelo farto do estar vivo
Doce laica bala que mastigo
Leigo é o meu contentamento
Perco-me no meu próprio castigo
Não ser Ipê, poeta, nem ser vento."